Fonte: G1 – Coluna Mundo Sustentável
Rondônia é uma parte do Brasil onde o desmatamento avança em diferentes frentes. Além dos canteiros de obras das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, há as plantações de café, o crescimento rápido da pecuária e a exploração ilegal de madeira. Por tudo isso, não deixa de ser curioso que aproximadamente nove etnias indígenas permaneçam até o momento isoladas no estado.
Não foi assim com os índios paiter-suruí. O primeiro contato com eles aconteceu durante a construção da BR-364 (Cuiabá-Porto Velho) no final da década de 1960. Uma história dramática que deixou marcas profundas na trajetória desse povo. Quase toda a aldeia foi dizimada pelo vírus do sarampo. Aproximadamente 5 mil índíos morreram, e entre os 299 sobreviventes restaram poucos adultos com perfil de líder. Em meio a essa tragédia, Itabira, com apenas 16 anos, foi eleito o novo cacique. Testemunhou a drástica redução do território suruí, a marginalização de seu povo, a desagradável e inédita dependência de ajuda do governo brasileiro, e a necessidade de vender madeira da reserva para a própria subsistência da comunidade.
Essa realidade perversa começou a mudar quando o sobrinho de Itabira, Almir, se tornou o novo líder com um discurso esquisito, que falava de “plano suruí para os próximos 50 anos”, “preservação da cultura”, “parcerias com todos os que possam ajudar a causa do nosso povo” e o mais surpreendente: “Chega de vender madeira da reserva! Precisamos proteger o que é nosso!” Romper com os madeireiros custou a paz de Almir Suruí e sua família. Até hoje ameaçado de morte (segue link da carta), ele já teve a cabeça a prêmio por 100 mil reais. “Sinceramente, acho que valho mais do que isso”, diz Almir, antes de abrir um sorriso que esconde a tensão de não poder descuidar da própria segurança.
Pessoal, emocional e espiritualmente comprometido com a causa do povo suruí, Almir já viajou por 31 países sempre à procura de ajuda para que seu povo viva com dignidade sem destruir a floresta. Esteve com figuras como Al Gore e o príncipe Charles, participou de algumas Conferências do Clima e vai dar o ar da graça na Rio+20. Escolhido pela revista americana Fast Company um dos 100 líderes mais criativos do mundo ( http://bit.ly/m7LuHq), ele visitava a Califórnia quando pediu aos seus cicerones (todos de organizações não governamentais ambientalistas) que agendassem uma entrevista com alguém importante do Google. De nada adiantou dizer para Almir que seria impossível fazer isso rapidamente, que os diretores do Google eram muito ocupados etc. Muitos telefonemas depois, o máximo que os ambientalistas conseguiram foi agendar um contato rápido durante um coffee break com a gerente de projetos comunitários da companhia. Quando Rebecca Moore viu aquele índio devidamente paramentado, com um discurso na ponta da língua (em português com tradução simultânea) em que convidava o Google para participar com ajuda tecnológica do projeto “Suruí 50 anos”, decidiu estender a conversa por três horas. Num dado momento, ela resolveu acionar o Google Earth para checar em que parte da floresta amazônica estava a reserva suruí.
“Quando vi aquela mancha verde cercada de desmatamento entendi o que Almir queria dizer”, me disse Rebecca. São exatamente 248 mil hectares de floresta protegida enre os estados de Rondônia e Mato Grosso. Rebecca disse que não foi fácil convencer seus superiores no Google a abraçar a causa suruí. “Eles me questionaram a razão pela qual nós apoiaríamos uma comunidade pequena, com apenas 1.300 índios, quando há tantas comunidades mais numerosas por aí nos pedindo ajuda. Eu disse que eles são comprometidos. Isso para mim faz toda a diferença”.
Nascia ali uma parceria que já resultou em três incursões de técnicos do Google na aldeia suruí que fica nas proximidades de Cacoal (RO). Em 2008, eles ensinaram os jovens da tribo a usar o Google Earth e a montar um blog. Em 2009, capacitaram os índios a usar smartphones para flagrar a ação de madeireiros, caçadores ou pescadores ilegais na floresta. Desde então, grupos de 20 índios se revezam em longos plantões que podem durar até 15 dias na mata. No último ano, considerando apenas flagrantes de madeireiros ilegais, foram registradas cinco ocorrências. Os índios gravam as imagens, marcam a posição exata do delito com a ajuda do GPS e enviam os dados para a Polícia Federal e a Funai.
Semanas atrás eu pude acompanhar a terceira visita da equipe Google ao território suruí. Desta vez, o objetivo da missão foi apresentar o mapa cultural suruí, um software especialmente desenvolvido para a comunidade que reúne informações e imagens produzidas pelos próprios índios numa “enciclopédia virtual” que eterniza as histórias, o folclore, lugares e objetos sagrados, bem como as espécies vegetais e animais mais importantes para os suruís.
“A partir desta parceria com os índios brasileiros nós, no Google, nos capacitamos para produzir projetos que hoje ajudam outras 12 diferentes culturas indígenas espalhadas pelo mundo”, diz Rebecca. O contato dela com a língua portuguesa revelou uma palavra que não existe em inglês: “socioambiental”. ”Deveria existir. Ela empresta um sentido mais exato a tudo isso que estamos testemunhando”.
Nos festejos pela celebração da parceria, todos os técnicos da Google se deixaram pintar com uma tintura à base de genipapo que leva até três semanas para desaparecer do corpo. Eles também dançaram com os índios na aldeia, tomaram bebida feita com milho fermentado e participaram da competição de arco e flecha. Foi lindo acompanhar esses momentos de pura diversão e entretenimento entre duas culturas bem diferentes que se respeitam e se admiram mutuamente.
A festa marcou também o lançamento do projeto “Carbono Suruí”, com o aval de duas certificadoras internacionais, que abre caminho para a obtenção de créditos de carbono a partir das áreas não desmatadas no território. É o primeiro projeto do gênero concebido a partir de uma comunidade indígena no mundo.
Almir Suruí conduziu a celebração com a altivez de um chefe que se reconhece como parte de algo maior. “Não gosto quando falam muito de mim. Não é a minha causa. É a do meu povo”. Ele sempre começa o dia reservando alguns minutos de silêncio para buscar inspiração numa força superior. Almir sabe-se no meio de uma longa jornada que neste momento demanda precioso tempo e energia e parece se nutrir de algo invisível. Inquieto, ele não nunca se dá por satisfeito. Pude constatar isso no dia seguinte à celebração na aldeia quando, por coincidência, tomamos o mesmo avião para Brasília com escalas em Vilhena e Cuiabá. Almir é uma usina de boas ideias que dependem de ajuda para dar resultado. Ele aproxima os diferentes, desafia a lógica e transforma o improvável em inédito. É um líder nato, do tipo que o mundo precisa conhecer para reinventar seu caminho e reescrever a História.
André Trigueiro
Assista a reportagem exibida na coluna “Sustentável” no Jornal da Globo sobre a parceria entre Google e Suruís: