Desastre ecológico das armas

Não é normal que os filhos deixem de viver antes dos pais. É contra a ordem natural das coisas. Esse é o tipo de perda para a qual nos julgamos menos preparados, a dor mais aguda e temida. Mas a estatística de mortalidade por causas não naturais no Brasil traz à tona o escândalo das armas de fogo que provocam o desaparecimento precoce de milhares de jovens. Há 50 anos as principais causas de morte dos jovens com idade entre 15 e 24 anos no Brasil eram as epidemias e as doenças infecciosas. A urbanização do país e o crescimento desordenado das cidades provocaram mudanças importantes nesses indicadores. De acordo com o “Mapa da violência III”, um relatório da Unesco baseado nos dados do Ministério da Saúde, em 1980, mais da metade (52,9%) dos óbitos de jovens foram causados por acidentes de trânsito, suicídio e principalmente homicídios.

No ano 2000, esse percentual subiu para 70,3%, uma verdadeira epidemia de violência, sustentada por revólveres e pistolas de vários calibres. Oficialmente, 17.762 jovens, a maioria com idade de 20 anos, predominantemente do sexo masculino (93,3%), foram assassinados, eliminados de forma violenta e sumária em todo o país. Tomando esse número por base, são 48 jovens que tombam nas ruas das cidades a cada dia. Dois por hora.

Alguns estatísticos temem que, nesse ritmo, a desproporção entre homens e mulheres se acentue em algumas localidades do Brasil. Repare que esses dados se restringem apenas aos óbitos na faixa etária entre 15 e 24 anos, porque se avançarmos para a população total, o número sobe para 45.919 óbitos por ano, o que dá uma média de 126 pessoas assassinadas por dia, 5 por hora. São números vergonhosos, acachapantes, que superam com folga as estatísticas de mortalidade nos conflitos do Oriente Médio, dos atentados contra as torres gêmeas em Nova Iorque e as duas guerras contra o Iraque.

Em resposta a essas indicadores de violência, parte expressiva dos brasileiros entende que a solução é reforçar a segurança por conta própria, comprando mais armas e munição, muitas vezes na clandestinidade, sem porte ou licença. É o nosso faroeste caboclo, que conta no Congresso Nacional com o respaldo do poderoso lobby das armas. Mesmo agora, quando o assunto volta a ser discutido no parlamento, e vários especialistas em segurança pública e pesquisadores do fenômeno da violência urbana defendem a suspensão da venda de armas de fogo no Brasil (exceto para os profissionais da área de segurança pública ou privada), o lobby das armas não dá trégua e fecha o cerco contra os congressistas e o governo federal.

Defender a situação atual, onde o que se vê é a multiplicação das armas de fogo no Brasil, não é ético, não é razoável, não é ecológico. Em que pese tudo o que já se disse em contrário, arma de fogo é contra a vida. E contra a economia também. Um estudo do Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER) revela que o custo de produção da riqueza que deixa de ser gerada por pessoa assassinada seria de R$ 53.200. Mas não há dinheiro que pague o sofrimento de quem gerou, deu nome, criou e viu crescer um filho, para vê-lo morrer ainda jovem, e guardar de lembrança um pedaço de papel com as iniciais do Instituto Médico Legal, onde aparece a seguinte explicação para aquele fim trágico: “Causa da morte: ferimento provocado por arma de fogo”. Que não falte coragem aos nossos congressistas para assinar o atestado de óbito da indústria armamentista, definir novas regras para a licença e o porte de armas, e punir com muito mais rigor quem estiver armado sem a devida autorização.André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003).