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O resgate da água

A maior nação católica do mundo será convidada em 2004 a se mobilizar em defesa das águas do Brasil. Pela primeira vez em quarenta anos, a Campanha da Fraternidade terá como tema um assunto ecológico. “Água: fonte da vida” é o ponto de partida de um amplo movimento que vai mobilizar 10 mil paróquias em todo o país, e que atingirá seu clímax durante a Quaresma, que vai da quarta-feira de cinzas até o domingo de Páscoa.

Despertar a consciência dos brasileiros para a crescente escassez de água doce e limpa é apenas um dos objetivos da Campanha. A CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – quer alertar os fiéis para a necessidade de se informarem melhor sobre a situação dos mananciais nas cidades onde vivem, o destino do esgoto e o armazenamento de lixo.

A reflexão é o ponto de partida para a ação, que deverá sempre contar com o apoio da Igreja. Um aspecto interessante da Campanha é o resgate da dimensão mística da água, elemento usado por várias tradições religiosas em diferentes rituais que simbolizam a vida e a purificação. Os católicos pretendem apoiar também as ações locais que já promovem a defesa dos recursos hídricos.

A grande preocupação da CNBB é que as privatizações no setor de água e saneamento básico se multipliquem pelo país. Num planeta onde a água limpa vem se tornando um recurso cada vez mais escasso, e portanto de valor econômico cada vez mais alto, a Igreja quer denunciar o risco de a privatização aumentar o número de excluídos. Na avaliação dos bispos, se a água se transformar numa mercadoria atraente, disputada por empresários ávidos de lucro, a corda vai arrebentar para o lado mais fraco, no caso, os pobres.

Teme-se a elevação sem precedentes das tarifas e o esquecimento dos investimentos sociais. Esta é a razão pela qual a Campanha da Fraternidade promoverá um abaixo assinado reivindicando a manutenção dos serviços públicos de água e esgoto, e maior transparência na gestão dos recursos hídricos, de preferência com a participação de representantes da sociedade civil. A expectativa dos organizadores não é nada modesta: esperam reunir um milhão de assinaturas.

Fontes da Agência Nacional de Águas e especialistas em Hidrologia consideram importante a contribuição da CNBB no avanço da consciência da população sobre o assunto água. Reconhecem como legítima a preocupação com as privatizações. Mas questionam o preconceito da Igreja em relação a participação do capital privado em investimentos no setor.

Na opinião desses especialistas, a questão é relativamente simples: o Brasil necessita de aproximadamente 6 bilhões de reais por ano para investir em saneamento, e não tem esse dinheiro. Trata-se de um investimento urgente, porque a falta de saneamento tem múltiplos impactos, todos negativos: a maior parte das internações hospitalares na rede pública de saúde tem origem nas doenças causadas pela água suja; menos de 20%dos esgotos no Brasil, segundo o IBGE, recebem algum tipo de tratamento; vivemos num país com quase 5.600 municípios, onde apenas 13 tratam exemplarmente seus esgotos. Como se vê, não falta esgoto nesse país. O que falta é dinheiro para tratá-lo.

A solução, segundo esses técnicos, seria buscar um modelo de gestão compartilhada em que o poder público e a iniciativa privada dividissem custos e responsabilidades. Ao governo caberia a definição das regras, que deveriam garantir a universalização dos serviço de água e esgoto, sem prejuízos para a população mais pobre. Na opinião desses técnicos, uma gestão eficiente – instalando hidrômetros individuais, trocando tubulações velhas, impedindo a multiplicação desenfreada de”gatos”, especialmente entre consumidores que poderiam pagar a conta, etc -serviria para reduzir o imenso desperdício que se vê no Brasil (algumas companhias públicas perdem até 60% da água tratada antes que ela chegue às torneiras), aumentar a arrecadação e custear os serviços de água e esgoto para os mais pobres.

Como até hoje essas regras não foram definidas com clareza – o atual governo promete fazê-lo em breve – , a dúvida dá margem a um mar de incertezas. É nesse contexto que a Campanha da Fraternidade chega emboa hora, lembrando que a água é um bem público, que todos nós temos direito à água limpa e de qualidade, e que cada pequeno gesto em defesa do mais básico dos elementos é tarefa inadiável e urgente.

André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003).

 

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