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Natal é solidariedade

“Quer pagar quanto?”. No futuro, o Natal 2003 será lembrado por esta pergunta, repetida exaustivamente pelo garoto propaganda de uma rede de lojas, e que inspirou a criação e pelo menos três sites na internet reunindo gente que não agüenta mais ouvir o rapaz oferecendo promoções de Natal. “Quer pagar quanto?” é uma daquelas invenções geniais da publicidade, que viram bordão e caem fácil na boca do povo.

Uma tirada que revela sem nenhum pudor o lado pagão de uma festa que alguns ainda acreditam ser religiosa. A cada aparição na tevê, o ator, que virou notícia pelo salário de aproximadamente R$ 100 mil, se esforça para provar que eu, você, todos nós que assistimos ao comercial estaremos perdendo tempo – e dinheiro – se não corrermos até a loja mais próxima para comprar os produtos oferecidos a preços supostamente irresistíveis.

E assim vai chegando mais um Natal em que os apelos consumistas alcançam indistintamente quem pode e quem não pode comprar. “Ou você tem, ou você não tem”, resume de forma impiedosamente direta um comercial de automóvel. E a dura realidade é que a maioria das pessoas que assiste a esses comerciais na televisão, num país chamado Brasil, não tem.

É curioso como a festa que celebra o nascimento de Jesus – que imortalizou em diversas passagens do Evangelho uma crítica profunda ao materialismo – seja reconhecidamente a mais consumista de todas as festas. O Natal do “Quer pagar quanto?” nos alcança com muito mais força, e demanda de nossa parte alguns cuidados para que não sejamos vítimas inocentes desse arrastão promovido pela mídia.

Para quem está desempregado ou chegou ao final do ano sem dinheiro sobrando, as chances de experimentar um Natal diferente daquele decantado pela publicidade são grandes. Muitos ficam deprimidos e não conseguem imaginar um natal sem presentes ou ceia farta. Nesse sentido, a overdose de propaganda com motivos natalinos gera ansiedade e angústia. Quem não tem dinheiro para gastar, sofre porque se descobre excluído da festa. Mas, num ambiente onde predomina a escassez – ainda que de forma temporária – é que surgem os mais comoventes exemplos de solidariedade.

Quando a vida é dura, aprende-se cedo a compartilhar, a dividir o que se tem, “onde comem três, comem quatro”, e surge a argamassa da comunidade. Nem favela, nem bairro, nem morro. Quando se mora “na comunidade” há algo mais profundo. Um sentimento que reforça o coletivo, aquilo que é de todos, e merece a atenção e o cuidado de todos. É nesse contexto que surge o mutirão, a obra coletiva que constrange os egoístas, cala os pessimistas e confunde os políticos que só aparecem de vez em quando para prometer e não cumprir.

A força da comunidade se confunde com os valores defendidos pelos cristãos, e relembrados agora, ainda que timidamente, por ocasião do Natal. Há quem celebre o Natal apenas uma vez por ano, de preferência com muitos presentes, comes e bebes. Há quem celebre o Natal o ano inteiro, compartilhando e dividindo, confiando e amando, seguindo em frente com os meios que a Providência faculta.

Esse é o verdadeiro Natal. Ninguém em sã consciência poderia defender a pobreza ou fazer apologia da escassez. Mas é preciso reconhecer que os verdadeiros valores cristãos, relembrados durante o Natal, passam longe dos sonhos de consumo despertados na avalanche de comerciais exibidos pelas televisões, rádios, jornais e revistas nessa época do ano. “Quer pagar quanto?” Da próxima vez que vir o comercial, quem sabe, você tenha a coragem de dizer: Por enquanto nada, meu amigo. Feliz Natal pra você e um ótimo ano novo.

André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003).

 

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