Diário de bordo: histórias do FICA

Toca o telefone no Rio de Janeiro, e do outro lado da linha a voz pausada e grave do amigo Washington Novaes embala o convite de Goiânia: “Nós gostaríamos que você viesse participar do FICA este ano. Que tal?” Senti uma ponta de constrangimento, por não saber rigorosamente nada sobre o FICA. Estávamos no início de 2003, e o tal do FICA já ia para a sua quinta edição. Fora do eixo Rio-São Paulo, longe dos holofotes da mídia no Sul Maravilha, o maior festival de cinema e vídeo ambiental do Brasil, o quarto maior do mundo, era algo solenemente ignorado por estas bandas. Bom, vindo do Washington, o convite só poderia ser coisa boa, pensei. Eu estava sendo chamado para participar de uma mesa-redonda que discutiria mídia ambiental. De quebra, poderia acompanhar a exibição dos filmes, animações e documentários do Festival, as oficinas, e, por último, mas não menos importante, conhecer a cidade de Goiás, que sabia ser a terra de Cora Coralina e da Procissão do Fogaréu. Mas jamais havia ouvido falar do FICA.

Desembarquei no aeroporto de Goiânia com outros convidados, seguimos de ônibus para Goiás, e quando me dei conta estava irremediavelmente atraído pelo conjunto da obra: uma linda cidade histórica – que mais parece cenário de filme – recebendo gente de várias partes do Brasil e do mundo numa pajelança cósmica, um formigueiro humano cobrindo de esperança as ruas de pedras cravadas nas margens do Rio Vermelho. Nessa Babel cultural, Goiás se transforma na capital mundial da rebeldia em favor da vida; da conspiração contra o atual modelo de desenvolvimento “ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto”; do uso subversivo dos recursos audiovisuais em favor da luta por um mundo melhor e mais justo, um mundo sustentável.

Com a máquina fotográfica a tiracolo, no melhor estilo turista acidental, gastei quase um rolo de filme na inútil tentativa de explicar por imagens a grande loucura do FICA: a transformação de um ginásio esportivo num cinemão com direito a ar-condicionado, tapete, telão e som de alta definição. O povo entra de graça e assiste ao que quiser numa intensa movimentação que reúne alunos de escolas públicas e particulares, estudantes universitários, professores, cinéfilos, turistas, ambientalistas, curiosos e uma coleção de tipos que emprestam um colorido especial ao Festival. E assim fui me deslumbrando, me deixando levar pela magia de um evento que promove muita informação, diversão e… piedade. Sim, não há como deixar de sentir pena dos jurados do FICA. Para acompanhar toda a mostra competitiva, eles participam de uma verdadeira maratona que exige, sobretudo, resistência física. Em três dias, os jurados assistem a quase vinte horas de projeção. O massacre só é compensado pela qualidade e variedade dos filmes, invariavelmente distantes do padrão hollywoodiano de entretenimento barato com final feliz.

Deixei Goiás levando comigo uma garrafinha de “Atitude” – a cachaça local cujo nome é absolutamente sinérgico com os propósitos do Festival -, além de fotos do Morro do Macaco Molhado, onde os gringos são apresentados ao forró brasileiro. Mas o que pesou na bagagem foi uma tremenda inquietação. Por que o Brasil desconhece o FICA? Por que não levar os filmes do FICA para outros lugares do País?

Semanas depois, por iniciativa do jornalista Zuenir Ventura – outro carioca entusiasmado com o FICA -, “Bottom Line – Privatizing the World”, de Carole Poliquin, vencedor do prêmio especial do Festival naquele ano, foi exibido no cineminha do Museu da República, no Rio. Uma única exibição, gratuita e aberta aos privilegiados que tomaram conhecimento do evento. Meses mais tarde, minha mulher, Carla Oliveira, então coordenadora de projetos especiais da UNESCO do Rio, realizava a primeira Edição do “FICA no Rio”, no Museu dos Correios, quando todos os filmes premiados no festival foram exibidos em uma mostra gratuita. Durante três dias, a exibição dos filmes era precedida por uma palestra de um especialista convidado para falar sobre um dos temas ambientais abordados no Festival. De Goiás, a organização do FICA acompanhava a evolução dos acontecimentos no Rio, onde o Festival começava a ser conhecido e comentado.
No ano seguinte (2004), novamente por intermédio do amigo Washington Novaes, recebi surpreso o convite para presidir o júri do VI FICA. Lembrei-me do massacre dos jurados na longa maratona de filmes, mas a honra do convite superou qualquer hesitação em aceitar. Lá estava eu novamente embarcando para Goiás, agora com um novo sentimento: a ansiedade de presidir pela primeira vez o júri de uma megafestival de cinema e vídeo. Dos 299 trabalhos inscritos de 34 países, apenas 28 se classificaram para a mostra competitiva. Devo dizer que foi uma das experiências mais incríveis da minha vida. O elevado nível dos meus companheiros de júri emprestou um sabor especial aos debates que definiram os vencedores. Lembro-me que até o último dia do Festival nenhum filme havia impressionado os jurados de forma arrebatadora. Foi quando vimos “Surplus”, de Erik Gandini, um documentário genial, ácido, demolidor, que denunciava as mazelas da sociedade de consumo. Para minha alegria, o júri não teve dificuldades em sacramentar o resultado.

Deixei Goiás já envolvido na segunda edição do “FICA no Rio”, que mobilizou, além da UNESCO, os apoios do SESC, da REBEA (Rede Brasileira de Educação Ambiental) e da Rádio CBN. Logo no primeiro dos três dias programados para a mostra, o susto: o Rio de Janeiro era castigado por uma tempestade daquelas que anunciam enchentes. Temíamos a ausência de público no moderno auditório do SESC (Arte Sesc – Flamengo), zona sul da cidade. Para nosso alívio, todos os duzentos lugares foram rapidamente ocupados, e o SESC teve de providenciar uma televisão de 29 polegadas para as mais de 50 pessoas que ficaram do lado de fora acompanharem do foyer as palestras e a projeção dos filmes. Casa cheia também nos outros dois dias de evento. Era o FICA comprovando sua força, qualidade e empatia.

Em 2005, fui convidado novamente para presidir o júri do festival, que ostentava um número recorde de inscrições: quase 700 filmes, animações e documentários vindos de mais de cem países. A maturidade do FICA poderia ser medida apenas por estes números. Mas haveria um teste ainda mais importante e definitivo. Quis o destino que o corpo de jurados do VII FICA, no entendimento de que se tratava de fato do melhor filme, oferecesse o prêmio mais importante ao documentário francês de média metragem “A Morte Lenta pelo Amianto” (“Asbesto, a Slow Death”), de Sylvie Deleule. O documentário mostra a luta contra a utilização do mineral cancerígeno em vários países, incluindo o Brasil. E é justamente em Goiás que está situada a maior mina de amianto do País, em plena atividade, que estaria sendo explorada com recursos supostamente menos impactantes para a saúde e com o apoio de amplos setores da política local, inclusive o Governo do Estado, que promove o FICA. Pois bem, a escolha do júri foi respeitada, o prêmio de R$ 50 mil foi entregue a Sylvie Deleule – que parecia não acreditar no que estava acontecendo – e o FICA, na minha opinião, firmou-se como um festival com absoluta credibilidade e isenção

Também em 2005, no Rio de Janeiro, a III Mostra FICA no Rio consolidou a parceria do ano anterior (UNESCO, SESC e Rádio CBN), com ótima presença de público nos três dias de evento e uma inovação importante: depois que todos os filmes vencedores foram exibidos gratuitamente no Arte Sesc, seguiu-se uma mostra itinerante denominada “Circuito Universitário”, em que os filmes do FICA foram exibidos em 8 universidades (PUC, UERJ, UNIRIO, UNICARIOCA, UNIGRANRIO, FEUC, MSB, SIMONSEN) públicas e privadas. Ao final da maratona, a UNESCO publicou um relatório com palestras e papers dos especialistas que participaram como convidados do “Circuito Universitário”, proferindo palestras sobre os temas dos filmes. Milhares de pessoas puderam acompanhar o melhor da produção audiovisual exibida em Goiás, num esforço coletivo para divulgar o FICA e os temas absolutamente pertinentes e urgentes que todos os anos são exibidos no Festival.

Tenho um carinho enorme pelo FICA, pela cidade de Goiás e pelos inúmeros amigos que fiz nessas idas e vindas do Cerrado. Aprendi muito com essas experiências, todas elas de fundamental importância na minha formação e na definição dos meus projetos profissionais nas áreas de jornalismo e educação. Sinto-me, portanto, privilegiado por ter feito parte dessa história.André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003).