Por Cláudia Guimarães*
As primeiras imagens da África do Sul não nos prepararam para o que encontraríamos. A dez mil metros de altitude, um virtual colchão de nuvens se interpunha entre nós e o continente, àquela hora já banhado pelos raios do alvorecer. Nada evocava, ainda, a ancestral beleza das paragens africanas e muito menos, poderia antecipar o vibrante caldeirão multiétnico que encontraríamos num país marcado por décadas de apartheid1.
Os 13 dias seguintes se revelaram um tempo muito exíguo para legitimar opiniões categóricas, apontar caminhos ou discorrer em profundidade sobre os problemas que afligem o país. O máximo que um viajante nessas circunstâncias pode ousar fazer, na volta para casa, é simplesmente compartilhar algumas impressões sobre os aspectos do cotidiano que mais lhe chamaram a atenção. E é o que faremos aqui.
Poligamia oficializada
O primeiro sinal de que estávamos em um país com características culturais diferentes das nossas foi muito sutil. Recém desembarcados no belo aeroporto de Joanesburgo, nos deparamos com modernas e limpíssimas instalações sanitárias, mas com um “toque” incomum: em um dos toaletes femininos, no lugar da privada, havia apenas uma abertura no chão… (Imediatamente, veio à memória o que havia, naquele mesmo molde, na casa do meu avô, no interior de São Paulo, e que ainda existe em muitos rincões do Brasil, mas obviamente não é encontrado em banheiros de instalações do porte de um aeroporto internacional). Surpresa também nos toaletes masculinos, por nos depararmos sempre – não só no aeroporto, mas em todos os espaços visitados depois (museus, restaurantes, shoppings etc) – com um funcionário que educadamente oferece toalhas de papel e dá orientações básicas de higiene aos usuários…
Aquele era apenas o primeiro sinal, entre muitos, de que estávamos mergulhando em um novo contexto cultural. Outros viriam em seguida, ainda no aeroporto, materializados pelos inúmeros véus na cabeça de mulheres islâmicas e até pela presença de algumas poucas burcas… ou pela profusão de penteados – aqui genericamente denominados de “afros” – que incluíam de verdadeiras obras de arte com trancinhas a cabeças totalmente raspadas, que é o que, naturalmente, mais nos chamava a atenção.
Já na saída do aeroporto, a conversa com nosso culto e politizado motorista, Sidney, de origem indiana e de religião muçulmana, nos ajuda a começar a entender um pouco do caldeirão cultural desse país. Quando perguntamos, em tom de brincadeira, quantas esposas ele tinha – numa referência ao atual presidente, Jacob Zuma, da etnia zulu, que é casado oficialmente com três mulheres – Sidney respondeu, com um irônico sorriso, que “uma só era mais do que suficiente para um homem”. Essa, aliás, foi a resposta que obtivemos de todos os sul-africanos a quem fizemos a mesma pergunta…
No fundo, esperávamos outra resposta, já que, desde 1998, a Justiça passou a reconhecer os casamentos polígamos realizados de acordo com tradições africanas, com o declarado objetivo de proteger os direitos de mulheres e crianças em relação à propriedade.
Quando perguntamos como uma prática desta pode coexistir em uma África do Sul moderna e ocidentalizada, Sidney disse que leva muito tempo para se mudar tradições tão arraigadas… Mas acrescentou outros elementos de reflexão ao dizer que, em alguma medida, o regime do apartheid também estimulou a manutenção desse antigo costume tribal, ao impedir durante muito tempo que os negros pudessem trazer para áreas próximas aos seus locais de trabalho as suas famílias – que ficavam nas longínquas localidades no interior onde eram confinadas pelo regime de segregação racial. Longe das esposas, a quem viam, no melhor dos casos, uma vez ao ano, era muito comum que terminassem abandonando a primeira companheira ou, seguindo seus ancestrais costumes, passassem a ter uma segunda mulher.
O império das vans e dos carros brancos
Centro financeiro e industrial do país, Joanesburgo (localmente chamada de “Joburg”) é a maior cidade da África do Sul. Tem 3,8 milhões de habitantes, mas, dependendo dos parâmetros utilizados, a “Grande Joanesburgo” teria de 7 a 10 milhões. Não é uma das três capitais do país (Pretória abriga o Poder Executivo; Bloemfontein, o Judiciário, e Cidade do Cabo, o Legislativo). Mas, além do seu peso econômico, também é a sede da Corte Constitucional, que dá a palavra final sobre quaisquer questionamentos à Constituição surgida no pós-apartheid.
Decidimos deixar a visita à cidade para o fim da viagem, pois, como principal porta de entrada e saída do país, necessariamente teríamos que voltar a ela.
Quando saímos do aeroporto de Joanesburgo, três fatos nos chamaram a atenção no caminho rumo à região noroeste do país.
O primeiro foi o impressionante número de carros brancos e a reduzida quantidade de ônibus, tanto nas ruas da cidade, quanto nas estradas intermunicipais que tomamos em seguida.
Sidney nos disse que a predominância absoluta daquela cor nas ruas e estradas do país se deve ao fato “da lanternagem e pintura serem mais baratas nos carros brancos”.
Já para a praticamente ausência de ônibus, não havia explicação, a não ser o histórico descaso com a população negra, principal usuária do transporte coletivo. O fato é que quando perguntávamos onde estavam os ônibus, a resposta era sempre “na outra rua” ou “na outra avenida”… coincidência ou não, nunca estavam nas vias ou estradas em que passávamos…
Perguntado qual era a opção para os que não tinham seu próprio automóvel, em uma cidade do porte de Joanesburgo, Sidney apontava para enormes filas onde as pessoas aguardavam as nossas já conhecidas vans: “É assim que a maioria das pessoas se locomove aqui”. O pior é que, segundo ele, lá – como também acontece nas cidades brasileiras – elas são “administradas” por verdadeiras máfias que costumam cometer toda sorte de irregularidades…
O segundo fato que nos surpreendeu foi termos nos deparado em Mabodisa, pequena e pobre comunidade de 4 mil habitantes na província de North West, a cerca de duas horas de Joanesburgo, com uma Igreja Universal do Reino de Deus.
Sem um conhecimento mais profundo da realidade local, ao chegarmos ao país ignorávamos que 80% dos sul-africanos são cristãos, de diferentes correntes (basicamente, católicos, pentecostais, anglicanos e metodistas)2 . Mesmo de posse dessa informação, não podia deixar de nos surpreender a presença da Universal em um local tão remoto da África do Sul.
Por último, ao longo da viagem nos chamou a atenção a visão das minas e, próximo a elas, dos miseráveis barracos onde moram os que nelas trabalham.
Segundo John, um taxista que pegamos dias depois, apesar dos enormes avanços sociais que os negros vêm usufruindo desde o fim do apartheid, as condições de trabalho nas minas ainda são muito ruins. “Infelizmente, por várias razões, não vemos mais o mesmo nível de mobilização por parte das organizações de trabalhadores negros. Na época do apartheid, o movimento sindical era cerceado e violentamente reprimido, mas, ainda assim, as pessoas arriscavam suas vidas e exigiam condições de trabalho mais dignas nas minas. Hoje, com muitos dos dirigentes daquela época trabalhando para o governo, não existe mais esse mesmo ímpeto…”.
Caldeirão multiétnico
Á Africa do Sul tem 48 milhões de pessoas, categorizadas pelo censo como africanos negros (79,4%), brancos3 (9,2%), coloured4 (8,8%), e indianos5 e asiáticos em geral (2,6%). O amálgama étnico e cultural da África do Sul explica o fato do país ter 11 línguas oficiais, sendo nove africanas6 e duas de origem européia (o africâner e o inglês). Em função da colonização britânica, este último é o idioma comum dos sul-africanos, mas ocupa apenas o quinto lugar entre as línguas maternas mais faladas no país. Por isso mesmo, durante a viagem, escutávamos o tempo todo a população negra conversando não em inglês, mas em suas próprias línguas – como o zulu, o xhosa (que se diz “cósa”, com um som de “clique”, impronunciável para nós, brasileiros) e o tswana -, assim como o faz também a tradicional e numerosa comunidade de origem indiana.
Já o africâner – língua dos descendentes dos antigos colonizadores holandeses e cujo aprendizado foi imposto à população negra nos duros tempos do apartheid – só tivemos a oportunidade de escutar quando viajamos ao noroeste do país. Lá, no Pilanesberg National Park – reserva natural para onde nos dirigimos depois que o nosso destino original, o National Kruger Park, inundou por chuvas excepcionalmente fortes – Ferdinand (nosso jovem guia de origem africânder) falava o tempo todo nesse idioma com os colegas, também da mesma origem e idade.
Para nós, que já penávamos tentando entender o inglês com carregadíssimo sotaque que é falado no país, o africâner era simplesmente o tiro de misericórdia… Com uma sonoridade muito estranha aos nossos ouvidos, era impossível entender uma só palavra! (confesso que não nos surpreendeu ficar sabendo que a língua havia sido rotulada, em setembro de 2005, pela revista britânica Wallpaper, como “a mais feia do mundo” 8 …).
A beleza do mundo selvagem
A visita ao belo Pilanesberg National Park merece um breve comentário.
A passagem pela reserva foi breve, mas marcante. Além do contato com animais selvagens, nunca esqueceremos a imagem do nascer do sol naquele altiplano, a beleza do seu lago – situado no que foi o cume de um antiqüíssimo vulcão –, a graça de um pássaro curiosamente chamado de “bispo vermelho” ou a imponência de um cactus tão alto quanto uma árvore.
Não sendo biólogos ou veterinários, nos maravilhávamos a cada momento com a perfeição e beleza da natureza, que estudamos em livros, mas raramente temos a oportunidade de ver in loco.
Também nos surpreendíamos todas as vezes em que nos deparávamos com situações que, de alguma forma, nos remetiam aos desafios da nossa própria espécie… Ao apontarmos, por exemplo, um enorme elefante, que se destacava na manada, soubemos por Ferdinand que ele teve que ser trazido do Kruger Park. Quando perguntamos por que, ele disse algo que para ele era óbvio: “Precisávamos de um animal adulto. Nossos elefantes chegaram aqui filhotes e simplesmente não tinham idéia de como se comportar… Esse elefante mais velho não só os ´colocou na linha´, como ensinou tudo o que eles precisavam saber para sobreviver na natureza. Afinal, todos precisamos de alguém para nos educar na vida, não é?”, disse, sorrindo.
Nos dois dias que ali passamos, conseguimos avistar leões, rinocerontes e elefantes, três dos chamados “Big Five” (grupo de animais tradicionalmente considerados os mais difíceis de serem caçados, e que inclui ainda os búfalos e os leopardos).
Mas o ponto alto dos safáris se deu com um animal que não está nessa lista. Como dizia um antigo comercial, a “primeira vez” a gente não esquece… principalmente se tratando de um encontro, cara a cara, com um animal do porte de uma girafa!
Se o coração já havia batido mais forte, ao vermos, à distância, vivendo ao ar livre, elefantes, leões, rinocerontes, hipopótamos, zebras, raposas, gnus e springboks (antílope que é o símbolo do país) , não há como descrever a nossa emoção ao nos vermos cercados por um grupo de 15 girafas! Ao contrário do que esperávamos, ao nos avistar, elas não se sentiram intimidadas pela nossa presença e, com seu peculiar andar cambaleante, cruzaram placidamente nosso caminho, na certeza de terem o domínio do território – da mesma forma, aliás, como vimos agir um enorme leão, no dia seguinte. São imagens cujo impacto nenhum registro material (fotos, vídeos) é capaz de apreender e expressar…
Praias paradisíacas e favelas
Se as diferenças culturais entre o nosso país e a África do Sul são grandes, as semelhanças, paradoxalmente, são enormes. A sensação de “estar em casa”, para cariocas como nós, foi particularmente intensa durante um passeio pelos bares e restaurantes da praia de Camps Bay, na belíssima e cosmopolita Cidade do Cabo.
Nos ensolarados dias de verão que pegamos em janeiro, tanto a geografia (mar junto à montanha) quanto a hospitalidade do povo e o astral daquele lugar nos remetiam, inevitavelmente, à nossa conhecida Ipanema. Só faltavam as águas quentes do nosso litoral (a temperatura da água lá é muito baixa, principalmente no verão, quando as praias recebem as águas que degelam na Antártica).
Essa sensação de “estar em casa” se confirmou numa visita à agradabilíssima Waterfront – revitalizada área do porto que hoje concentra lojas, restaurantes, museu, anfiteatro etc – onde descoladas jovens bronzeadas, de short e camiseta, exibem suas legítimas havaianas enquanto se misturam a islâmicas com as cabeças respeitosamente cobertas por véus, em meio a shows ao ar livre de música tradicional africana, de rock ou reggae.
Por razões diferentes, tivemos o mesmo sentimento ao visitar uma favela da Cidade do Cabo. A primeira sensação ao pisar em Imizamo Yethu é de déjà vu. Qualquer típica favela brasileira apresenta os mesmos miseráveis barracos de materiais precários, junto a residências de alvenaria e até casas com razoável padrão – estas últimas, habitadas pelos moradores beneficiados pelos ambiciosos programas governamentais de moradia popular, impulsionados com o fim do apartheid.
Portanto, ali, o que mais nos chamou a atenção não foi a miséria, que conhecemos bem como brasileiros, mas nos deparar com o generalizado sentimento de xenofobia, que não é a regra nas comunidades de baixa renda do nosso país.
Segundo explicou Desmond, nosso jovem guia, esse sentimento vem da verdadeira avalanche de estrangeiros – em sua maioria, negros oriundos de países como o Zimbábwe, Malawi e Moçambique – que a cada ano entram ilegalmente no país, se sujeitando a trabalhar por salários ínfimos8. “Por isso, eles são discriminados pela população. Estão numa situação ainda inferior à dos mais pobres sul-africanos, e aceitam qualquer coisa… São eles, em geral, que ocupam as piores moradias das nossas favelas”, disse, apontando barracos minúsculos, onde, em um só cômodo vivem família inteiras.
Apesar das diversas políticas visando uma melhor redistribuição da renda, Imizamo Yethu é um dos inequívocos sinais de que ainda há um longo caminho a percorrer para superar as enormes desigualdades de natureza social, econômica e racial. Segundo um relatório do governo, de 2010, a renda mensal média dos negros aumentou 37,3% desde 1994. No caso dos brancos, entretanto, o aumento foi de 83,5%.
Diante de uma realidade tão desigual, não surpreende que, no ranking da ONU do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado em novembro de 2011, o país que tem o maior PIB do continente africano ocupe uma nada honrosa 123ª posição (o Brasil está em 84º).
Os casamentos mistos
Em um país onde durante décadas os casamentos interraciais foram proibidos por lei, sujeitando à prisão quem desrespeitasse essa norma, a miscigenação naturalmente ainda não é expressiva, se comparada à realidade brasileira. Mas todos – brancos, negros e de origem indiana – garantem que, passados 20 anos do fim da segregação racial, as uniões entre os diferentes grupos étnicos começam a se tornar mais comum, principalmente entre os mais jovens, já criados no pós-apartheid.
Quando perguntados como reagiriam suas famílias numa situação assim, os depoimentos de todos com quem conversamos foram unânimes: “Os mais velhos, principalmente, têm muita dificuldade, mas depois terminariam aceitando um casamento assim, porque hoje a realidade do país é outra”. Saímos de lá nos perguntando até que ponto isso seria verdade, já que vimos pouquíssimos casais “mistos”…
Tampouco pudemos averiguar a veracidade de outra informação, muito curiosa, dada por dois jovens que conhecemos em diferentes cidades. Ao responder à nossa pergunta sobre a situação das mulheres negras na África do Sul hoje, Maggie – uma bela jovem tswana que trabalha no Pilanesberg Park – disse que vem melhorando, pouco a pouco. E acrescentou: “Naturalmente, isso muda muito, dependendo da região e da etnia. Nós, por exemplo, somos muito mais independentes e autônomas que as zulus e xhosas. Ao contrário delas, não nos submetemos docilmente aos homens”, garantiu, com uma clara ponta de orgulho.
Dias depois, já em Joanesburgo, lembramos o que Maggie havia dito, ao escutarmos Swize, nosso jovem e articulado guia em Soweto, se queixando das mulheres tswanas. Apesar de pertencer à mesma etnia, ele namorava uma moça de outro grupo: “As tswanas não servem para casar… não respeitam os seus maridos… se você ficar desempregado, ela não vai pensar duas vezes em colocar você para fora de casa… só estão interessadas no seu dinheiro…”, resmungou.
Recordista mundial de estupros
Se o comentário da Maggie e Swize sobre o forte temperamento das tswanas nos deram margem a muitas brincadeiras, o tom das conversas ficava extremamente sério quando tentávamos saber se tem havido alguma melhora nas tristes estatísticas que colocam a África do Sul entre o países com o maior índice do mundo de estupro de mulheres e crianças.
Um estudo da Interpol, feito em 2008, mostra que uma mulher é estuprada a cada 17 segundos no país; já o Unicef denuncia que 200 mil crianças sofrem essa violência anualmente. Segundo pesquisa do Medical Research Council, um em cada 4 homens admitiu ter violentado um mulher na vida, sendo que a metade dos entrevistados confessou múltiplos estupros! Em outra pesquisa, com 1.500 estudantes de Soweto, em Joanesburgo, um quarto de todos os rapazes disse que ‘jackrolling‘ (um termo usado para designar o estupro coletivo ), “era divertido”.
A quantidade de reportagens sobre esse problema que lemos todos os dias nos jornais, durante a nossa curta estada no país, confirmou a gravidade das estatísticas. Para Celina, uma mulher xhosa de cerca de 50 anos, que conhecemos na região noroeste do país, a situação hoje ainda está muito longe do ideal, mas vem melhorando. “Antes, nem registravam a queixa, quanto mais encontrar os agressores. A mulher era estuprada e ficava por isso mesmo… A impunidade ainda é a regra, mas já vemos algum empenho em encontrar os criminosos e puni-los, e há campanhas para reduzir a violência doméstica”.
A epidemia de Aids
O tom também era sempre de preocupação quando perguntávamos sobre a epidemia de Aids/HIV. Recordista mundial no número de casos de AIDS/HIV, o país tem – segundo dados da ONU de 2007 – 5 milhões e 700 mil pessoas vivendo com o vírus, ou seja, cerca de 12% da população total. A contaminação de grávidas é altíssima, chegando a 37% nesse grupo, entre as mulheres da populosa província de KwaZulu-Natal.
A enorme quantidade de contaminados e já falecidos em conseqüência da doença (só em 2010 foram 300 mil) mostra um quadro realmente assustador. E ainda assim não dá idéia dos “efeitos colaterais” da epidemia, como a desagregação social (com a desestruturação familiar e a geração de uma infinidade de órfãos, abandonados à sua própria sorte) e o impacto econômico (em função das milhares de pessoas que ficaram incapacitadas para o trabalho).
O assunto ainda é tabu e ninguém gosta de falar sobre ele. Mas todo mundo conhece alguém doente. Não faz muito tempo, Sizwe havia perdido um amigo, a quem viu definhar lentamente pela doença. “Não gosto de lembrar dessas coisas… é muito doloroso ver alguém tão jovem morrer assim…”, disse, com o olhar triste.
Perguntado se os jovens como ele estariam usando com mais frequência preservativos, garantiu que sim. Também fez questão de ressaltar que hoje já são feitas campanhas públicas de prevenção e o governo vem oferecendo tratamento gratuito a um número cada vez maior de doentes.
De fato, segundo dados de 2007, 28% das pessoas que haviam desenvolvido a Aids estavam recebendo o tratamento anti-retroviral. Um número muito reduzido, mas bem maior do que os 4% de 2004, 15% de 2005 e 21%, de 2006.
Mesmo com esses avanços, ainda há muito o que fazer, como mostra o emocionante filme “Life above all”, produção sul-africana de 2010, que acompanha a heróica luta de uma adolescente de 12 anos contra o preconceito e humilhações sofridas pela mãe, portadora do vírus HIV/Aids, numa comunidade do interior do país.
Construindo o futuro, sem esquecer o passado
Como descobrimos rapidamente, a África do Sul é um país dinâmico e multifacetado, que foge aos estereótipos e procura se reinventar a cada dia. O triste passado do apartheid ainda está vívido e presente nos depoimentos de quem tem mais de 35 anos, mas o foco hoje está na pavimentação de um novo presente, e os olhares voltados para a construção de um futuro onde haja, de fato, lugar ao sol para todos, independente da sua cor, gênero ou credo.
Para alcançar esse objetivo, desde o fim do apartheid, existem políticas públicas de ação afirmativa que visam reverter a infame situação à que foi submetida a população negra por séculos. Na prática, isso significa prioridade para os negros desde na concessão de bolsas de estudos, na inscrição para planos de moradia subsidiados e até para vagas de trabalho.
Quando perguntávamos a sul-africanos não negros o que pensavam disso, eles resumiam seu sentimento em poucas palavras, como o fez Hanna, uma dona de casa de Joanesburgo, de origem indiana, 40 anos, casada e com dois filhos: “Depois de tudo o que eles passaram, é justo. Não podemos nos queixar. Não tínhamos os privilégios da minoria branca, mas tampouco sofremos o que eles passaram. Agora é a vez deles”.
Em todos os lugares é perceptível que o fim do regime do apartheid está gestando uma nova realidade no país. Mas as marcas dos hard days (“anos difíceis”), como eles chamam aquela época, ainda são muito presentes.
Joe é um simpático e falante motorista de táxi. Tem 40 anos e lembra de todas as vezes em que um policial branco do seu bairro, por pura diversão, rasgava o passe dele e de seus amigos, todos adolescentes negros na década de 1980.
O passe era o documento que a população negra era obrigada a portar o tempo todo, como um “passaporte interno” que lhes autorizava a circular dentro do seu próprio país9. Era difícil consegui-lo e ao mesmo tempo, sem ele, o deslocamento entre os municípios e dentro das próprias cidades – para trabalhar, estudar, visitar amigos e parentes ou até ir a um hospital, numa situação de emergência – ficava praticamente inviável para os negros.
“Quando nos deparávamos com ele na nossa rua, sabíamos que estávamos encrencados. Não importa que não tivéssemos feito nada de errado. Ele se divertia nos humilhando, rasgando na nossa cara o nosso passe, quando não nos levava para a delegacia para nos bater… Mas aqui se faz, aqui se paga… se ainda está vivo, ou ele foi embora do país ou deve estar penando com alguma doença grave… O que importa é que gente como ele não tem mais lugar na nossa sociedade. E por isso mesmo, muitos preferiram ir embora do país”, diz Joe.
De fato, de acordo com um levantamento realizado em 2010 pela organização South African Institute on Race Relations, quase 800 mil brancos (de um total de 4 milhões) deixaram o país após o fim do apartheid, culpando a discriminação na disputa de vagas no mercado de trabalho e a alta taxa de crimes. Mas a maioria ficou. E nem todos se conformaram com a perda dos seus privilégios, como demonstraram vários episódios nos últimos anos.
Só para citar os que tiveram maior repercussão na mídia internacional, em junho de 2010, ou seja, um mês antes da Copa do Mundo na África do Sul, militantes brancos da extrema-direita, organizados em grupos paramilitares, foram presos quando planejavam atentados contra bairros de maioria negra. Dois meses antes, o clima de tensão racial havia se agravado com o assassinato do líder branco da ultradireita, Eugene Terreblanche, por dois funcionários negros de sua fazenda. Chefe dos serviços secretos sul-africanos durante o apartheid, Terreblanche lutou ferozmente pela manutenção e depois pela volta do regime do aparthed, tendo defendido até a sua morte um Estado africâner secessionista dentro da África do Sul .
A morte de Terreblanche chegou, inclusive, a suscitar um movimento, através das redes sociais, por parte de alguns africâners. Alegando que estariam sendo alvo de ataques e suas vidas corriam perigo, eles usaram o Facebook para reivindicar que o governo holandês lhes desse cidadania, na condição de descendentes dos colonos boers que 300 anos atrás se instalaram na África do Sul.
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A história viva em Soweto
A pesada herança do apartheid está presente em todos os lugares, mas em nenhum lugar a sentimos com tanta força como em Soweto, cuja visita havia determinado a escolha de passarmos os últimos dois dias de viagem em Joanesburgo.
A mais conhecida e populosa favela do país surgiu de um precário assentamento criado em 1904 para receber os negros, arbitrária e violentamente expulsos pelas autoridades brancas de suas casas em Joanesburgo, para onde haviam se mudado para trabalhar nas insalubres e perigosas minas de diamante, descobertas alguns anos antes.
Situada a cerca de 30 km do centro de Joanesburgo, Soweto tem 1,5 milhão de habitantes, a maioria absoluta negros. Hoje, a antiga favela é um bairro de Joanesburgo, onde convivem uma reduzida, mas próspera classe média, uma grande população de trabalhadores de baixa renda e uma parcela de miseráveis favelados que ainda não foram atendidos pelos programas oficiais de construção de casas populares, que ganharam impulso a partir do fim do apartheid.
Se, por um lado, novamente fomos tomados pela sensação de déjà vu, ao ver cenas familiares em áreas pobres do Brasil – como a presença dos catadores de rua e de vendedores ambulantes – , por outro, não tínhamos dúvida que estávamos adentrando uma localidade que havia garantido o seu lugar nas páginas da História.
Era, portanto, impossível não se emocionar na visita à igreja Regina Mundo – baluarte da resistência, que acolhia os que se opunham ao apartheid e estavam impossibilitados de se reunir em outros espaços públicos pelas leis segregacionistas – e ao Memorial onde está imortalizada, em uma enorme “mesa” de pedra, as principais reivindicações da Freedom Charter of Kliptown10.
Claramente inspirada na Carta Universal dos Direitos Humanos, o manifesto da Freedom Charter foi um marco, ao defender publicamente – num corajoso ato de enfrentamento ao regime do apartheid – uma sociedade multirracial, democrática e plural, onde todos tivessem os mesmos direitos.
Mas o ponto alto da visita, como não podia deixar de ser, foi a ida ao museu Hector Pieterson, assim batizado em homenagem ao menino de 12 anos morto no levante estudantil cuja imagem do corpo já sem vida, carregado por um jovem, terminou correndo o mundo e se transformando no símbolo da revolta.
Soweto foi colocada no mapa do mundo por aquela corajosa rebelião de crianças, adolescentes e jovens que, em 16 de junho de 1976, organizaram um grande ato de protesto contra a obrigatoriedade de ter aulas em africâner, a língua oficial do apartheid. O pacífico protesto terminou no massacre pela polícia de dezenas de crianças e adolescentes, uniformizados e desarmados, que ganhou as manchetes internacionais. A semente da revolta contra o sistema educacional do regime do apartheid se espalhou como rastilho de pólvora em todos os estabelecimentos escolares da África do Sul e resultou em inúmeros protestos estudantis nos anos seguintes.
No museu Hector Pieterson é difícil segurar as lágrimas diante das fotos e vídeos que revivem a história do lugar, desde a demolição das casas da população negra que vivia em Joanesburgo, no início do século passado, e foi obrigada a se transferir para Soweto – sem dispor de luz, água, saneamento ou transporte público – até as imagens da rebelião estudantil de 1976.
Muito emocionante, também, foi ter tido a oportunidade de assistir entrevistas do líder anti-apartheid Steve Biko, morto após ser preso e barbaramente torturado pela polícia sul-africana, em 1977, aos 30 anos de idade. Em um painel, uma citação dele resumia a filosofia do movimento que ele havia criado, anos antes, o Consciência Negra: “Black Consciousness é uma atitude da mente e uma forma de vida. É a percepção que a mais potente arma nas mãos dos opressores é (o controle) da mente do oprimido”.
Saímos do museu emocionalmente devastados e nos perguntando como foi possível que um regime como aquele, que desrespeitava todos os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pudesse ter existido em pleno século XX e durado tantas décadas…
A herança de Mandela
Mas Soweto não tem só tragédias para recordar. Além de abrigar o Museu Mandela, situado junto à antiga casa do maior líder da luta anti-apartheid, a cidade tem o orgulho de exibir a única rua em todo o planeta que possui o endereço de dois laureados pelo Prêmio Nobel da Paz – Nelson Mandela (premiado em 1993) e o bispo anglicano Desmond Tutu (1984) – ambos pela sua heróica luta contra o apartheid.11
Aliás, cabe assinalar que, em relação ao ex-presidente Mandela, justas homenagens pela sua história de luta contra o apartheid se estendem por todo o país. Por onde fomos, encontramos ruas, pontes, praças, escolas, prédios com o seu nome ou sua estátua. O tempo mostrou que seu 28 anos de prisão (1962-1990), nas piores condições possíveis, não foram em vão.
Tivemos a oportunidade de ter uma remota idéia dessa bela história de vida ao visitarmos Robben Island, ilha situada em frente à Cidade do Cabo. Inicialmente usada para confinar pacientes com doenças contagiosas, ela passou a receber prisioneiros comuns e políticos já no final do século 17. Foi nela que Nelson Mandela passou 18 anos da sua vida, parte da pena de prisão perpétua à que foi condenado por sabotagem.
Ao percorrer a ilha, guiados por um ex-preso político que ali ficou preso por 7 anos, nos perguntamos como Mandela e tantos outros presos conseguiram sobreviver à dureza de um dia a dia que incluía trabalhos forçados numa pedreira, sessões de tortura, privação de sono e alimentação, períodos em solitárias, falta de assistência médica e frio (apesar das baixas temperaturas registradas no inverno, os presos negros – ao contrário dos que pertenciam a outros grupos étnicos – não podiam usar agasalhos nem sapatos, e só dispunham de um fino cobertor).
Vendo a cela de Mandela, nos perguntávamos se ele imaginava, naqueles duros anos, que após a sua libertação ele receberia o Prêmio Nobel da Paz e seria eleito, em 1994, o primeiro presidente negro do país…
As virtudes que o colocaram no panteão das grandes figuras históricas do século 20 ficaram claras no belo filme “Invictus”. Em um país onde até o esporte ficou marcado pela segregação racial (enquanto a população negra é fanática pelo futebol, como pudemos ouvir da boca de todos os que entrevistamos, os brancos de origem africâner costumam se interessar apenas pelo rúgbi), o gesto de Mandela de apoiar a seleção de rúgbi, no campeonato mundial realizado lá em 1995, tem um simbolismo e uma grandeza que só entendemos plenamente ao conhecer a África do Sul… Foi a reafirmação de que sim, é possível um dia superar as chagas do passado e construir a tão sonhada sociedade democrática e multirracial, ainda que leve tempo e seja preciso superar obstáculos de toda ordem.
Se não fosse por muitos outros motivos, bastaria o fato de ter tido a chance de conhecer in loco a herança de uma figura histórica como Nelson Mandela – para a África do Sul e o resto do mundo – para sentirmos que valeu muito a pena ter escolhido aquele país como o destino das nossas férias.
Mas ainda há muito o que ver e conhecer. Por isso, de uma coisa temos certeza: voltaremos!
* A jornalista e educadora ambiental Claudia Guimarães viajou em janeiro à África de Sul, de férias, com o seu companheiro, André Trigueiro.
**As estatísticas apresentadas nesse relato aqui foram extraídas, em sua maioria, do site da Wikipédia e, portanto, podem apresentar discrepâncias em relação a outras fontes.
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Notas de rodapé:
1. O apartheid era um regime segregacionista que negava aos negros da África do Sul direitos sociais, econômicos e políticos. Embora várias medidas – formais ou não – visando à segregação racial já existissem na África do Sul desde o século 17, quando a região foi colonizada por ingleses e holandeses, o termo só passou a ser usado quando esse sistema foi legalmente implantado no país, em 1948.
Entre as principais leis do apartheid, podemos citar: proibição de casamentos entre brancos e negros (1949), obrigação de declaração de registro de cor para todos sul-africanos (1950), proibição de circulação de negros em determinadas áreas das cidades (1950), criação dos chamados bantustões (áreas só para negros, em 1951), proibição de negros no uso de determinadas instalações e áreas públicas (bebedouros, banheiros públicos – 1953), criação de um sistema diferenciado de educação para as crianças dos bantustões (1953).
Este sistema começa a ser desmantelado em 1990, quando o governo racista inicia a revogação de leis segregacionistas e, entre outras medidas, decreta a libertação de um dos principais líderes da luta anti-aparheid, Nelson Mandela, preso há 28 anos. Mas só é totalmente abolido em 1994, com as primeiras eleições democráticas e com total participação da maioria negra.
2. Segundo o último censo (de 2001), o país conta também com 15% de muçulmanos, 1,3% de hindus e 0,2% de judeus. Quanto aos cerca de 15% de sul-africanos que não especificaram suas religiões no levantamento, se acredita que sigam as religiões tradicionais africanas.
3. Os brancos sul-africanos são descendentes de holandeses, ingleses, franceses huguenotes e outros povos europeus, além de colonos judeus.
4. São chamados coloured os “mestiços” descendentes das uniões de pessoas de grupos étnicos africanos, como os khoisan e xhosa, com colonos brancos e povos de origens muitos distintas (Índia, Malásia, Indonésia, Madagascar, China, Moçambique), muitos dos quais trazidos para trabalhar como escravos no período colonial e que se concentraram, principalmente, na região da Cidade do Cabo.
5. Os indianos começaram a chegar ao país no final do século 19 e início do 20, a maioria como trabalhadores braçais nas plantações de cana da província de Natal. Eles vieram de diferentes partes do subcontinente indiano, seguiam diferentes religiões e falavam diferentes idiomas. O mais famoso membro da comunidade foi Mahatma Gandhi, que viveu no país de 1893 a 1914, onde, como advogado, desenvolveu suas idéias políticas e consolidou sua liderança na luta pacifista em prol de uma sociedade mais justa.
6. As línguas oficiais africanas são o zulu, xhosa, ndebele, northern sotho, sotho, swazi, tswana, tsonga e venda.
7. Segundo o site da “Famous People news”, edição de 22/10/2008, a escolha levou o magnata africâner Johann Peter Rupert a retirar da revista todos os anúncios das empresas sob seu controle.
8. Calcula-se que existam na África do Sul 5 milhões de imigrantes ilegais, dos quais 3 milhões originários do Zimbábue. Sua presença, disputando trabalhos e moradias com a população pobre sul-africana, tem provocado nos últimos anos tensões e violentos confrontos.
9. As primeiras leis de passe foram introduzidas já no século 18 para controlar o movimento de escravos negros na Cidade do Cabo. No início do século passado, sucessivas leis expandiram o seu uso, principalmente a partir de 1948, com a implantação do regime do apartheid, e endureceram as penas para quem fosse flagrado sem ele.
10. A Freedom Charter consolidou as principais reivindicações do Congresso Nacional Africano (ANC), mais importante organização na luta contra o apartheid, e na qual militava Nelson Mandela. A Carta foi oficialmente adotada pelo ANC em junho de 1955, num congresso realizado na comunidade de Kliptown, em Soweto, que foi brutalmente reprimido pela polícia (na ocasião, Nelson Mandela conseguiu escapar por pouco de ser preso). Sua filosofia está resumida na sua declaração inicial: “The People Shall Govern! (“O povo deve governar”). Muitos dos seus princípios foram incorporados à Constituição pós-apartheid.
11. O primeiro sul-africano a receber o Nobel da Paz foi o presidente do Congresso Nacional Africano (ANC), Albert Luthuli, em 1960. Além dos três lideres negros da luta anti-apartheid, o ex-presidente branco F. W. De Klerk, recebeu, junto com Mandela, o mesmo prêmio.
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