Por Renato Grandelle
Fonte: Revista Amanhã O Globo
Uvaia, saputá, cambuci e cagaita soam como nomes exóticos para muitos brasileiros, mas são frutas que, entre tantas outras, já foram mais presentes na alimentação do país. Com o avanço do desmatamento, as árvores frutíferas nativas foram isoladas em pequenos fragmentos de floresta. Seus frutos, antes disponíveis em todo o bioma, são agora escassos. E se tornaram desconhecidos.
A Mata Atlântica já cobriu o litoral brasileiro. Hoje, apenas 7,9% de sua cobertura florestal ainda resistem, e quase exclusivamente em fragmentos com menos de 50 hectares. Mesmo com a destruição do bioma, pelo menos 17.500 espécies de flora estão em sua área — mais do que o existente em toda a Europa (12.500 espécies). São plantas já descritas e catalogadas, mas de potencial ainda desconhecido. Muitas destas ainda não exploradas seriam frutas que, uma vez domesticadas, poderiam ser adaptadas pela ciência e integradas à dieta da população.
Para que cheguem à mesa do consumidor, estas frutas raras precisam passar por um processo de melhoramento genético, que viabilize sua produção em grande escala. É o que acontece, por exemplo, com a espécie de maracujá encontrada no mercado.
A região da Mata Atlântica concentra os maiores centros de pesquisa científica do país. Mesmo assim, esta produção de frutas “novas” ainda engatinha nos laboratórios. Por isso, os alimentos exclusivos do bioma raramente chegam às cidades.
– É comum encontrar, no cardápio de uma lanchonete do Rio, cerca de dez sucos de frutas da Amazônia, mais de 30 da Europa e menos de seis da Mata Atlântica – lamenta Gustavo Martinelli, coordenador do Centro Nacional de Conservação da Flora (CNCFlora) do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico. – É um desperdício, quando lembramos que um grande percentual da flora do mundo está em nossa região.
Afastamento histórico
Com a produção agroindustrial das frutas raras, a ciência e tecnologia poderiam pagar uma dívida histórica que o homem tem com a Mata Atlântica.
Martinelli destaca como as pessoas se espantam quando descobrem que frutas como a jaca, a manga, a banana e a carambola, tão abundantes por aqui, não são nativas.
– Esta surpresa tem muito a ver com o passado de nosso bioma – descreve. – As florestas da Mata Atlântica foram as primeiras exploradas pelos colonizadores. As populações indígenas, que detinham o conhecimento empírico do uso de produtos nativos e naturais, foram dizimadas. Em seu lugar, os europeus introduziram alimentos que já conheciam, como a cana de açúcar e o café. Por isso até hoje estamos tão afastados do que vem de nossa mata.
As frutas amazônicas são populares no menu porque a colonização do bioma foi, segundo Martinelli, mais fiel às tradições locais.
– O europeu chegou na Amazônia depois de explorar o litoral, e houve a transmissão de conhecimento do índio para o caboclo, e deste para o homem da cidade – conta. – A cultura ainda está associada a elementos da biodiversidade da região. Um exemplo é o mercado Ver-o-Peso, em Belém, onde encontramos o mel de abelhas nativas, sementes, temperos, ervas locais. Na Mata Atlântica tudo isso já foi substituído.
O crescimento urbano, a especulação imobiliária e o processo desordenado de ocupação da Mata Atlântica tornou o bioma um dos 34 hotspots do planeta – o grupo de locais cuja conservação da biodiversidade é uma prioridade mundial.
Segundo a ONG Conservação Internacional, o bioma tem pelo menos 20 milhões de hectares de pastagens de baixa produtividade, que poderiam ser usados para cultivo agrícola ou destinados à restauração florestal. O incentivo à criação de viveiros e à atuação de coletores de sementes e produtores de insumos levariam a um novo mercado de serviços ambientais. E o aumento da produtividade da terra traria mais espaço para o cultivo de frutas raras.
Há, no entanto, resistência em investir em um novo uso do campo. Fundador de duas empresas de alimentos sustentáveis, George Braile admite que o maior desafio do setor é popularizar a produção e o consumo de frutas desconhecidas da Mata Atlântica.
– Os grandes proprietários rurais são obrigados a manter uma reserva legal que corresponda a pelo menos 20% de seu terreno. Esta área, para eles, é um passivo – assinala. – Podemos transformar aquela região em uma agrofloresta, que une técnicas tradicionais de uso do solo com trabalhos científicos. Assim, geramos receita quando a árvore ainda está em pé.
Braile testa há mais de três anos alimentos fabricados com a fruta do palmito-juçara e com o cambuci. Segundo ele, os produtos são bem recebidos pelos consumidores que participam das degustações.
– A reação é positiva, mas temos dificuldades em encontrar fornecedores capazes de produzir estas frutas em grande escala – explica.
Até pouco tempo atrás, segundo o empresário, os consumidores de produtos orgânicos eram vistos como “xiitas”. Aos poucos, esta avaliação é derrubada. Estima-se que o mercado nacional de alimentos sustentáveis cresça até 40% este ano. O segmento movimentaria R$ 2 milhões, especialmente em cidades como Rio e São Paulo, inseridas na Mata Atlântica.
Frutas raras são facilmente perecíveis e, por isso, não chegam às gôndolas de supermercados. Taperebá e guabijú, entre outros alimentos desconhecidos da Mata Atlântica, são encontrados apenas em feiras locais. A crítica é da assessora de Políticas Públicas da Oxfam, Analuce Freitas.
A organização estimula o que chama de ciclos curtos, em que a produção e o consumo de um alimento ocorrem em locais muito próximos. Desta forma, as frutas desconhecidas teriam mais chances de chegar à população.
– É muito difícil encontrar estes produtos nos grandes ciclos urbanos, já que as redes de supermercados não têm interesse em frutas sazonais – observa Analuce. – Como elas não estão disponíveis, as pessoas ignoram sua existência e não há demanda. É um ciclo vicioso.
De acordo com a Oxfam, a agricultura familiar sustentaria estes ciclos curtos. O cultivo de produtos locais e sazonais perto do consumidor diminuiria o desperdício de alimentos e provocaria economia no transporte.
Segundo projeções do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, a região que abriga resquícios da Mata Atlântica receberá, nas próximas décadas, eventos extremos como tempestades violentas e desabamento de encostas. Estes fenômenos colocariam em risco espécies endêmicas do bioma.
Para Analuce, o consumo de frutas nativas aumentaria a capacidade de sobrevivência da flora.
– Se houver maior procura pelas frutas, mais espécies endêmicas serão plantadas – explica. – Elas podem aumentar a disponibilidade de alimentos e contribuem para a restauração da Mata Atlântica e a absorção de carbono da atmosfera. Assim, os efeitos das mudanças climáticas podem ser atenuados.
Autor do livro “Frutas: sabor à primeira dentada” (Editora Senac), o botânico Gil Felippe alerta que a chegada em massa destes alimentos nativos ao mercado pode demorar.
– As frutas “novas” têm problemas que precisariam ser resolvidos para agradar ao público, como excesso de tanino e de acidez. E outras, como a jabuticaba, não sobrevivem a longas viagens – pondera.
Enquanto os alimentos permanecem no anonimato, os ambientalistas que têm acesso às frutas raras elegem suas favoritas.
– A cabeludinha, além de comestível, também é ornamental – assinala Martinelli. – É uma fruta muito pequena e amarela. Para mim é o melhor sabor da Mata Atlântica.
– A uvaia é o gosto da minha infância, quando eu chupava um picolé da fruta – lembra Felippe.
– O fruto da palmeira-juçara é muito nutritivo, é o principal alimento de diversos animais da floresta. E com ele também é possível fazer uma espécie de açaí – diz Braile.
Postado por Daniela Kussama