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Quando o Mundo Sustentável é Notícia

Num mundo em constante mudança e transformação, o bom jornalismo talvez seja aquele que consegue acompanhar a evolução dos fatos sem descuidar do contexto em que eles se resolvem. Neste momento em que experimentamos uma crise ambiental sem precedentes na história – aquecimento global, escassez de recursos hídricos, desertificação do solo, destruição acelerada da biodiversidade, crescimento desordenado das cidades, consumismo desenfreado, produção monumental de lixo, transgenia irresponsável – o estudante de jornalismo que sai da universidade depois de quatro anos de curso sem um pacote mínimo de informações na área ambiental, não está apto a cumprir sua função social. O mundo mudou, e as universidades devem acompanhar essa transformação, particularmente na área ambiental. Para os já formados, é preciso oferecer cursos de capacitação que ajudem o profissional de imprensa a se situar melhor num cenário que inspira inúmeros cuidados na elaboração das pautas e na definição do que é notícia. 

Não basta denunciar o que está errado. Isso é importante, mas não é o suficiente. O que se espera da mídia neste início de século XXI é a capacidade de sinalizar rumo e perspectiva, mostrar quais seriam as soluções inteligentes e sustentáveis para velhos problemas inerentes a um modelo de desenvolvimento “ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto”. No dia-a-dia de uma redação, não se economiza espaço para mostrar tragédias ambientais como grandes vazamentos de óleo, queimadas, enchentes, deslizamentos de terra, furacões e outros problemas do gênero. São assuntos “quentes”, segundo o jargão jornalístico, que rendem textos calóricos e imagens espetaculares. Mas deveríamos aguçar os sentidos para perceber a dimensão da notícia num gênero de cobertura que ganha cada vez mais força e prestígio: o que funciona, o que dá certo, o que poderia inspirar novas idéias e atitudes na direção da sustentabilidade.

O primeiro desafio é aplicar aquilo que pensadores como Edgar Morin e Fritjof Capra denominam de “visão sistêmica” ao exercício jornalístico. Ao reconstruir a realidade numa perspectiva invariavelmente reducionista e fragmentada, o jornalismo perde de vista a percepção do universo tal qual os físicos quânticos o descrevem: uma rede de fenômenos interligados que interagem e se comunicam o tempo todo. Enxergar sistemicamente significa perceber essa teia infinita de relações que emprestam sentido aos temas ambientais, e que poderiam oxigenar a notícia com abordagens menos imediatistas e mais abrangentes. Nesse sentido, pouco importa se uma redação tem ou não uma Editoria de Meio Ambiente. Se todas as editorias entenderem a visão sistêmica como uma preciosa ferramenta de trabalho para qualificar a pauta e redimensionar o conceito de notícia, a tão propalada “transversalidade dos assuntos ambientais” será fato no universo jornalístico.

No livro “Mundo Sustentável – Abrindo espaço na mídia para um planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), procurei demonstrar a urgência de uma abordagem mais agressiva da mídia na direção de alguns assuntos ambientais que ainda são entendidos como marginais ou periféricos. O livro reúne artigos e reportagens veiculados no rádio, na televisão, na internet e na mídia impressa, divididos em oito capítulos temáticos – consumo consciente, lixo, meio ambiente nas cidades, água, biodiversidade, energia, questões globais e jornalismo ambiental – que são 5 arrematados com comentários de especialistas convidados. A edição exibe um vasto repertório de experiências inteligentes e sustentáveis no uso dos recursos naturais que, embora ignorados pela grande mídia, merecem visibilidade. “Há uma mudança em curso no mundo que precisa ser melhor diagnosticada e compreendida. Ela é típica dos períodos de transição, em que novos valores desmontam lenta e progressivamente o que havia antes. Desta vez, entretanto, há um agravante: em nenhum outro momento da história a necessidade da mudança foi tão urgente” – é o que afirmo na apresentação do livro na condição de testemunha.

A informação não pode tudo, mas pode muito. Se já detemos um estoque de conhecimento, de ciência e de tecnologia capaz de promover a grande virada na direção de um mundo sustentável, e isso ainda não acontece no ritmo desejado, poderíamos atribuir essa letargia a duas possíveis causas: desinformação ou má-fé. Estou convencido de que a primeira alternativa prevalece sobre a segunda, ou seja, há uma enorme energia potencial de mudança sobre a qual a faísca da informação que remete à sustentabilidade pode desencadear uma benfazeja explosão.

Não se mudam hábitos e comportamentos por decreto ou medida provisória. Há um tempo de decantação das idéias até que estas amadureçam na forma de atitude. Mas o senso de urgência que deveria inspirar essa mudança é prejudicado pela vida artificial que levamos nas cidades – onde vivem 81% dos brasileiros -, como denunciou certa vez o saudoso José Lutzemberger ao afirmar que “o homem moderno, predominantemente urbano, nasce e se cria em ambiente artificial. Suas percepções e seus sentimentos são moldados por circunstâncias que nada se assemelham àquelas que nos deram origem e em que evoluímos. O homem moderno tornou-se incapaz de sentir profundamente o belo, não se incomoda com a feiúra, com o lixo e com a agressão à paisagem. Falta-lhe a ânsia de alcançar a harmonia em torno de si. Não somente o ambiente em que vivemos nos predispõe à alienação diante do mundo vivo. Toda filosofia de vida, nossa ética convencional, encontra- se em oposição às leis da vida”. Salve Lutz!

Não cabe mais invocar as gerações futuras como o fiel da balança na mudança de paradigma que se faz necessária e urgente. O timing acelerado das mudanças climáticas, agravadas pela queima progressiva de petróleo, gás e carvão – seguramente o maior problema ambiental do século XXI -, reduziu assustadoramente a escala de tempo das tragédias de origem antrópica.

Somos nós, aqui e agora, que devemos assumir a responsabilidade histórica pelo novo rumo. Não haverá missionários, salvadores da pátria, lideranças arrebatadoras capazes de mobilizar tantos, tão rapidamente, num intervalo de tempo tão curto. A complexidade das negociações no âmbito da ONU e o vagar das políticas públicas governamentais sufocam as ações mais abrangentes e visíveis. Ainda assim, há um movimento em curso. É importante dar-lhe força e sentido. No que diz respeito à imprensa, quando a informação fomenta a atitude que transforma a realidade, cumpre-se uma das funções mais nobres do jornalismo: mudar o mundo. Transformá-lo num lugar melhor e mais justo, um mundo sustentável.

“Há uma mudança em curso no mundo que precisa ser melhor diagnosticada e compreendida. Ela é típica dos períodos de transição, em que novos valores desmontam lenta e progressivamente o que havia antes. Desta vez, entretanto, há um agravante: em nenhum outro momento da história a necessidade da mudança foi tão urgente.”
André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003).

 

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