Um nó a ser desatado

Um dos maiores problemas ambientais do planeta é, curiosamente, uma das maiores paixões da humanidade. O século XX foi marcado pelo boom do automóvel, que se transformou num dos maiores sonhos de consumo da era moderna. Não é difícil encontrar alguém que deseje mais ter um carro do que a casa própria. E é bom deixar claro que já se foi o tempo em que o automóvel era apenas um veículo de transporte. Hoje ter carro é sinônimo de status, cada novo modelo explora um aspecto da personalidade de seu futuro dono: aventureiro, prático, romântico, luxuoso, etc. As propagandas de automóvel investem na fantasia do consumidor, exaltando a vaidade, o poder e a glória de possuir um veículo que o levará a qualquer lugar, invariavelmente rápido.

No início do século passado, apenas os ricos tinham condição de ter um carro. Mas quando Henry Ford descobriu na década de 1920 que era possível baratear os custos de fabricação construindo automóveis em linhas de montagem, o mundo nunca mais seria o mesmo. Um derrame de veículos automotores transformou o desenho das cidades, abrindo novos espaços para a carromania. Ruas e avenidas foram alargadas. Construíram-se túneis, pontes e elevados. Apareceram as vias expressas e os freeways. Os motoristas, insaciáveis, exigiam novos espaços para circulação. E o dinheiro dos impostos nunca foi suficiente para satisfazer esse apetite.

No Brasil, o entusiasmo com o automóvel levou o ex-presidente Juscelino Kubitschek a apostar todas as fichas no ‘rodoviarismo’. Agravou-se o processo de decadência dos trilhos, em favor do asfalto. Em triunfo, o transporte individual justificava investimentos maciços dos contribuintes, condenando os bondes, os trens, e mais tarde o metrô, às migalhas do orçamento para o setor de transportes. As montadoras, alegando sempre a condição de grandes empregadoras de mão-de-obra – embora hoje necessitem cada vez menos dos metalúrgicos para produzir carros num setor cada vez mais mecanizado – obtiveram generosos subsídios e preciosas reduções de IPI (imposto sobre produtos industrializados).

A falta de visão sistêmica para o setor de transportes em sucessivas administrações provocou a situação atual: a saturação de veículos nas cidades brasileiras e todos os transtornos que isso causa. Os engarrafamentos crescentes e a perda de mobilidade causam enormes prejuízos à economia, atrasando o deslocamento de trabalhadores, reuniões de negócios, etc. Parado no trânsito, o motorista se transforma numa presa fácil para assaltantes e há inúmeros registros de quadrilhas que agem durante os engarrafamentos. O que antigamente se chamava hora do rush, hoje se estende por diferentes horários do dia, aumentando o tempo gasto no deslocamento das mesmas distâncias.

Num engarrafamento, em que só é possível fazer uso das marchas lentas, o veículo consome mais combustível, libera mais fumaça e contribui para o agravamento dos problemas respiratórios da população. E esse é um dos principais problemas de saúde pública da atualidade. Estima-se que 800 mil pessoas morram por ano em todo o mundo devido a problemas respiratórios causados pela fumaça dos automóveis. Em cidades como São Paulo, onde para cada dois habitantes há um carro, a situação é gravíssima. A poluição ataca com mais violência crianças e idosos. Segundo estudo da faculdade de Medicina da USP, 455 pessoas com mais de 75 anos morrem por ano em São Paulo por problemas respiratórios causados pelos poluentes presentes na fumaça dos carros.

Quando a umidade relativa do ar é baixa, esses poluentes não se dispersam com facilidade, e agravam os problemas respiratórios. No último mês de agosto, depois de doze dias sem chuva, a umidade relativa do ar em São Paulo chegou a 15% , quando o índice mínimo aceitável estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), é de 20%. O ar seco e a poluição provocaram uma corrida ao Hospital das Clínicas onde o serviço de inalação registrou um crescimento de 35% nos atendimentos.

É urgente buscar saídas para essa situação. Investimentos maciços e progressivos em trilhos devem ser prioritários nos orçamentos municipal, estadual e federal, assegurando trens e metrô de qualidade para a população mais pobre que não tem carro e é a maioria absoluta dos brasileiros. E mais: expansão da malha cicloviária permitindo o acesso ao trabalho de bicicleta com infraestrutura para banho e bicicletários; uma política agressiva de fiscalização visando a regulagem dos motores; o incremento do uso do gás natural e do álcool como combustível, inclusive para os ônibus em substituição ao diesel; isenção de cobrança de pedágio para os carros que circulem com mais de três pessoas dentro, estimulando o transporte solidário (isso acontece há anos na Califórnia, EUA).

Além disso, realização de estudos que avaliem a cobrança de pedágio para quem vai de carro até o centro da cidade reduzindo assim os engarrafamentos numa área de circulação importante ( Londres instituiu em fevereiro desse ano a cobrança de pedágio no valor de oito dólares – aproximadamente R$ 24 – para quem vai de carro até o centro da cidade. Todo o dinheiro arrecadado no pedágio será usado para o financiamento do transporte coletivo – trens e metrô).

É bom lembrar que ônibus não é transporte de massa. E que as vans e as kombis surgiram no arrepio da lei e da ordem, para suprir a falta de uma política de transporte público inteligente, sustentável, e voltada para quem mais precisa: justamente aqueles que nunca terão um automóvel. Ou se desata o nó criado pelos carros nas cidades, ou esse nó haverá de sufocar o direito sagrado de ir e vir, com segurança e saúde.

André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003).