Relacionados

Tragédia anunciada

Desde a abertura do primeiro poço de petróleo do mundo, em 1860 nos Estados Unidos, sabe-se que um dia o chamado ouro negro deixará de existir. Na condição de recurso natural não renovável, o petróleo é finito, e torna-se cada vez mais escasso em função da demanda crescente de energia no mundo. Liderando com folga as estatísticas de consumo, os Estados Unidos transformam em fumaça a absurda quantidade de 20 milhões de barris de petróleo por dia, seguidos à distância pela China, com 6 milhões de barris por dia.

De acordo com o Departamento de Energia do governo americano, os Estados Unidos, que hoje importam aproximadamente 59% de todo o petróleo de que necessitam, deverão aumentar esse percentual para 69,4% em 2010. Tanta dependência de combustíveis fósseis levou o candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, John Kerry, a defender em campanha mais investimentos no incremento de outras formas de energia por motivo de segurança nacional. Segundo Kerry, ao depender do petróleo que vem de outras partes do mundo – especialmente dos países árabes – os Estados Unidos se vêem na desconfortável condição de reféns do cartel da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) e de inimigos políticos como o presidente da Venezuela, Hugo Chaves, que governa um país rico em petróleo ao mesmo tempo em que desdenha os interesses de Washington.

O apetite dos americanos é mesmo voraz: no mercado de derivados de petróleo, nada menos que 40% de toda a gasolina do mundo são consumidos pelos americanos. No país onde o automóvel é reverenciado como o maior sonho de consumo, não é de se estranhar que a maior parte do petróleo nos Estados Unidos sirva para manter cheios os tanques de combustível dos veículos automotores. Os carros da moda são os utilitários, aquelas pick-ups movidas a diesel, que poluem mais e são menos econômicos do que os outros. A contribuição dos utilitários para o aquecimento global foi reconhecida publicamente por Bill Ford, presidente da montadora que fez história na década de 1920 ao desenvolver a primeira linha de montagem. Neto do lendário Henry Ford, Bill admitiu constrangido que os utilitários se transformaram num sucesso de vendas, e que isso agravava indiretamente o problema do aquecimento global. O executivo lançou então um programa de metas destinadas a mudar o design dos motores para reduzir sensivelmente nos próximos anos as emissões de gás carbônico.

A iniciativa isolada da montadora passa longe dos interesses do governo Bush, que se mantém indiferente ao Protocolo de Kyoto, acordo internacional firmado em 1997 que estabelece a redução média de 5,2% dos gases que provocam o aquecimento global até 2012. Além de não reduzir as emissões de CO2, os Estados Unidos têm aumentado significativamente o lançamento de carbono na atmosfera.

É curioso como um dos efeitos do aquecimento global atinge diretamente, e de forma arrasadora, justamente os Estados Unidos. Especialmente para a população da Flórida – onde vivem 200 mil brasileiros – não deve ser nada fácil encarar três furacões em menos de um mês, com mortes e prejuízos astronômicos. Charles, Frances e Ivan confirmaram uma previsão nada animadora dos estudiosos do clima, reunidos no Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU: por conta do aquecimento global, os furacões devem aparecer cada vez mais vezes, em intervalos mais curtos, e com poder de destruição cada vez maior.

Os prejuízos se multiplicam para os maiores poluidores do planeta. As seguradoras manifestam publicamente suas preocupações com os prejuízos crescentes causados pelo pagamento de cada vez mais prêmios aos clientes atingidos pelos cataclismas em solo americano. Uma das maiores companhias de resseguros do mundo, a Munich Re, fez as contas e chegou à seguinte conclusão: nos anos 60, os prejuízos econômicos causados por essas catástrofes em larga escala pelo mundo totalizaram US$ 69 bilhões. Durante os anos 90, atingiram US$ 536 bilhões, quase oito vezes mais. É bom lembrar que a passagem do Charlie justificou a retirada sem precedentes de dois milhões e meio de pessoas de suas casas na Flórida. Gente que foi impedida de trabalhar, de estudar, de consumir, para fugir dos furacões.

Não raro, os furacões que vêm do Oceano Atlântico, passando pelo Caribe e pela Flórida, alcançam o Golfo do México onde as companhias de petróleo americanas têm inúmeros poços. Quando o furacão inicia seu ciclo de destruição, o preço do petróleo no mercado internacional sobe devido a incerteza dos investidores quanto à capacidade de produção dessas companhias atingidas pela tormenta. Toda vez que o preço internacional do petróleo sobe, os Estados Unidos sofrem um forte impacto no orçamento devido a sua enorme dependência do produto.

O presidente George W. Bush alega não existir certeza científica sobre a contribuição da humanidade no aquecimento global. Mas para a agência oficial americana encarregada de estudar as mudanças climáticas – um departamento financiado pelo próprio governo – não existem dúvidas de que a humanidade contribui de fato para o aquecimento global. Em resumo: um relatório do governo Bush desmente o presidente Bush. O relatório da agência contendo esta e outras informações angustiantes sobre o tema foi entregue ao Congresso dos Estados Unidos para análise. Mas Bush mantém-se irredutível.

Durante a passagem do furacão Ivan pelo Golfo do México, o principal aliado dos Estados Unidos e do presidente George W. Bush no mundo, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, comprometeu-se publicamente a mobilizar os países mais ricos do planeta reunidos no G-8 a adotarem medidas urgentes contra o aquecimento global. Blair disse que esse será o principal tema de seu mandato como presidente do G-8. Ele reconheceu que os países ricos são os maiores causadores do aquecimento global e lembrou que os países pobres sofrem as piores conseqüências. O governo britânico se comprometeu a estimular os investimentos em energia limpa com o objetivo de reduzir em 60% suas emissões de CO2 até 2050.

Do outro lado do Oceano Atlântico, o presidente Bush – cujo irmão, Jeb Bush, é o governador do estado da Flórida – mantém-se indiferente às conclusões dos cientistas e às “indiretas” dos aliados. O presidente texano – que prometeu em campanha ratificar o Protocolo de Kyoto para logo depois de eleito esquecer a promessa – que chegou à Casa Branca com o apoio do poderoso lobby do petróleo se mantém distante de uma discussão que o mundo considera urgente e inadiável. Enquanto a série de furacões deixa um rastro de morte, prejuízos e muita destruição, Bush nem se dá conta de como um velho ditado popular lhe cabe tragicamente bem: quem semeia vento, colhe tempestade.

André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003).

 

Mais vistos