São Pedro é inocente

Em vários jornais desta semana aparece em lugar de destaque o número de pessoas que morreram por causa das chuvas em todo o Brasil desde o início do ano: 56. Caro leitor, em benefício da nossa inteligência, é prudente que tenhamos cuidado ao nos depararmos com manchetes que reiteradas vezes culpam as chuvas por todos os alagamentos, enchentes, deslizamentos de terra, mortes e outras desgraças que ocorrem mais intensamente nesses meses de verão. É injusto que São Pedro leve a culpa sozinho.

Muitos milhões de anos antes de o primeiro ser humano habitar esse planeta (e nós já estamos aqui há quase dez milhões de anos), violentos temporais já faziam parte da rotina desse ponto azul perdido no universo. Pode-se dizer que chove forte desde que o planeta era habitando apenas por seres microscópicos que viviam nos oceanos e deram origem à todas as demais formas de vida. Sabe-se também que há milhões de anos as chuvas costumam ocorrer com mais frequência nos países tropicais do que em outros pontos do globo. É sabido também que, nos meses de verão, os temporais são mais intensos. “São as águas de março, fechando o verão”, cantava o mestre Tom Jobim celebrando o fim da estação chuvosa.

Mesmo sabendo de tudo isso, descuidamos das tarefas mais elementares para que a chuva não nos surpreenda. A dragagem dos rios, por exemplo. Com a impermeabilização do solo das cidades – a terra por onde a água se infiltrava vem sendo sistematicamente coberta por cimento, concreto e asfalto – a água da chuva segue à risca o ditado: cai em pé e corre deitada. Se os rios estiverem assoreados, haverá pouco espaço para receber todo o aguaçeiro de um temporal. Resultado: enchentes e alagamentos. Foi o que aconteceu dias atrás na Baixada Fluminense. O Governo do Estado – leia-se SERLA – não fez o dever de casa. Choveu forte, e deu no que deu. Culpa da chuva?

Certa vez, um repórter de televisão mostrou a dor e a agonia de moradores de Rio das Pedras, em Jacarepaguá, que com água pelos joelhos, reclamavam que haviam perdido quase tudo na enchente. Foram apresentados como vítimas. Num país com um déficit de 6 milhões de moradias, onde os pobres são abandonados à própria sorte quando o assunto é casa própria, eles são de fato vítimas. Mas invadiram uma área de várzea, nas margens de uma lagoa, que há milênios vem repetindo o mesmo movimento: nas temporadas de chuva as margens da lagoa avançam; nos períodos de seca, as margens recuam. Choveu forte e deu no que deu. Culpa da chuva?

O mesmo se dá em relação às encostas dos morros. Numa cidade caprichosamente espremida entre o mar e as montanhas, quantas vidas já se perderam por causa das construções erguidas onde antes havia vegetação?. Sem raiz, a terra perde a sustentação e cai. Quem estiver por perto, por cima ou por baixo vai junto. Quando isso acontece de quem é a culpa? Da chuva?

A remoção imediata das famílias situadas em áreas de risco para lugares onde haja segurança e conforto; a dragagem regular de rios, valas e canais; o reflorestamento de áreas de encosta onde o verde deu lugar ao marrom claro do barro e da argila; a aplicação de uma sobretaxa que incida sobre grandes construções ( estacionamentos, shoppings centers, postos de gasolina, etc. ) – que aumentam a impermeabilidade da cidade, agravando o problema das enchentes; são medidas que, se executadas regularmente, livrarão as autoridades de qualquer responsabilidade quando houver tragédias em períodos de chuva. Só então, será justo culpar a chuva pelas desgraças que hoje sobrecarregam o prestígio de São Pedro.

André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003).