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Kioto virou tratado

Depois de sete anos de intensas negociações, entrou em vigor no último dia 16 de fevereiro um acordo internacional sem precedentes na história, que pretende resolver, por etapas, o mais grave problema ambiental do século 21. Impedir o avanço do aquecimento global já havia sido entendido como prioridade durante a Rio-92, quando 175 países assinaram a Convenção sobre Mudança do Clima, que reconhecia a necessidade de uma estratégia internacional para enfrentar a elevação da temperatura da Terra. Cinco anos depois, o Protocolo de Kioto emprestou dentes a essa Convenção, estabelecendo metas e prazos para que os países industrializados, aqueles que historicamente mais contribuíram para o acúmulo de gases-estufa na atmosfera, reduzissem as suas emissões. Dos 141 países que ratificaram o protocolo até agora, 32 pertencem ao seleto grupo dos industrializados, o chamado “Anexo 1”, e deverão, entre 2008 e 2012, reduzir suas emissões em pelo menos 5%, tomando por base o ano de 1990.

Que ninguém espere desse Protocolo a salvação da humanidade. Ele é apenas o primeiro passo, como afirma o próprio documento ao se referir ao prazo de execução das metas como o “primeiro período de compromisso”. Estima-se que o esforço necessário para impedir o avanço do aquecimento global seria uma redução imediata de aproximadamente 60% nas emissões de gases-estufa (dióxido de carbono, metano, óxido nitroso e outros). Ora, se com um objetivo bem mais modesto os Estados Unidos ─ país que responde sozinho por 25% das emissões globais de gases-estufa ─ ficaram de fora, é de se imaginar o estardalhaço que metas mais ousadas causariam.

O fato é que mal o Protocolo saiu do papel e já se discute intensamente nos meios diplomáticos o que será o Pós-Kioto. À frente do G-8 e assustado com os efeitos colaterais do aquecimento, o primeiro-ministro britânico Tony Blair está empenhado em atrair os Estados Unidos para o “segundo período de compromisso”. O Governo Bush considera a implementação do Protocolo ─ e eventuais mudanças na matriz energética daquele país ─ sinônimo de custos extras e aumento do desemprego. Mas a Casa Branca também critica o fato de o Protocolo ter livrado de compromissos formais de redução países como China, Índia e Brasil, que, segundo estimativas da ONU, terão superado no ano de 2015 os países desenvolvidos nas emissões de gases-estufa. Essa crítica dos Estados Unidos encontra ressonância em outros países ricos, que também exigem o enquadramento dos países em desenvolvimento a partir de 2012. A posição do Governo brasileiro, em sintonia com o bloco dos emergentes, é a de que 90% dos gases acumulados na atmosfera desde o início da Revolução Industrial têm origem nos países industrializados, e que não seria justo punir com metas de redução os países que se desenvolveram mais tarde.

Como se vê, a posição dos países no tabuleiro das negociações fica mais ou menos vulnerável conforme a escala de tempo escolhida. No caso do Brasil, por exemplo, se a contabilidade das emissões resgatar o passivo de todos os países nos últimos 150 anos, nossa parcela de contribuição se restringiria a aproximadamente 1% do total de gases acumulado na atmosfera. Este é o número que o Itamaraty exibe mundo afora e que justificaria nosso suposto direito de poluir sem prejuízos para o desenvolvimento. Numa escala de tempo menor, que é a que interessa aos países ricos, os emergentes aparecem como vilões. A China, que queima carvão mineral para alimentar sucessivos recordes de crescimento do PIB, já seria o segundo maior emissor de gases-estufa do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Brasil e Índia estariam entre os seis maiores emissores.

Nosso calcanhar de Aquiles continua sendo a Amazônia. Segundo estudo divulgado recentemente pelo próprio Governo brasileiro, mais de 77% do gás carbônico lançado na atmosfera tem origem nas queimadas. O fogo na floresta apaga em certa medida a vantagem de possuirmos uma matriz energética limpa (baseada principalmente na hidroeletricidade), o uso do álcool como combustível e outros indicadores que nos distinguem positivamente nas negociações do clima.

Apesar de todas as dificuldades, sair da inércia é o grande mérito do Protocolo de Kioto. A simples vigência desse acordo já está desencadeando uma avalanche de investimentos na economia ─ energia limpa, aterros sanitários, projetos de reflorestamento etc. ─, com importantes impactos ambientais. Há muito o que fazer, e os desafios pela frente são imensos. Mas o primeiro passo, por ser o mais difícil, é também o mais importante.

* Este artigo foi publicado no jornal O Globo, em 11 de fevereiro passado.
André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003).

 

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