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Gás para o Brasil

Não bastassem as riquezas naturais que o distinguem no cenário internacional, o Brasil se revela igualmente rico na produção de um gás até então desprezado como insumo energético: o metano (CH4), resultante da decomposição da matéria orgânica. Imensos estoques desse gás combustível estão armazenados no lixo e nos esgotos que são displicentemente descartados em todo o país. Segundo o recém-lançado Atlas do Saneamento do IBGE, 63% das nossas cidades abandonam o lixo a céu aberto em vazadouros, e menos de 20% dos esgotos recebem algum tipo de tratamento. Trata-se de um enorme desperdício de energia e de dinheiro.

Após dois anos de pesquisas, técnicos do Ministério do Meio Ambiente revelaram o potencial energético dos aterros de lixo de 91 cidades brasileiras. Até 2005, a previsão é a de que a energia ali armazenada seja de 344 megawatts, o suficiente para abastecer 6 milhões e meio de pessoas. Para 2015, estima-se que o estoque de biogás acumulado chegue a 440 megawatts, o que daria para abastecer a população de Pernambuco, aproximadamente 8 milhões de pessoas.

A maior usina de energia do mundo sobre um aterro de lixo já está funcionando desde o início do ano em São Paulo. O gás metano estocado no Aterro Bandeirante tem capacidade para gerar energia durante 10 anos para uma população de 400 mil pessoas. A queima do gás tem ainda outra função importante: reduzir os impactos sobre o aquecimento global. Um dos grandes vilões do efeito estufa, o metano tem poder de aquecimento 23 vezes superior ao do dióxido de carbono (CO2). Por esse motivo, além de gerar energia, a queima desse gás traz efeitos benéficos ao planeta.

A queima perfeita do metano – mesmo sem estar associada à geração de energia – transformou-se em negócio milionário por conta dos chamados créditos de carbono. Os países industrializados, que de acordo com o Protocolo de Quioto têm a obrigação de reduzir as emissões de gases estufa, podem fazer isso investindo em projetos que alcancem esse objetivo, fora de seus territórios, em países em desenvolvimento, como o Brasil. E o potencial de investimentos em créditos de carbono no Brasil, segundo o já citado estudo do Ministério do Meio Ambiente, chega a 70 milhões de dólares, considerando-se apenas a queima de gás metano nos aterros de lixo.

A concessionária que administra o novo Aterro Sanitário de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, obteve o aval do Banco Mundial para vender créditos de carbono ao governo holandês no valor de 8,5 milhões de euros. O pré-contrato já foi assinado e é o primeiro do gênero no país. Mesmo sem ter sido ainda implementado internacionalmente, o Protocolo vem justificando inúmeros investimentos em energia limpa, reflorestamentos e outras iniciativas que ajudam a reduzir os impactos do aquecimento global.

Numa escala bem menor, mas igualmente importante, o metano também vem sendo utilizado como fonte de energia em comunidades de baixa renda. Nas favelas de Petrópolis, por exemplo, a concessionária de água e esgoto, com o apoio da ONG Instituto Ambiental, vem replicando um tratamento alternativo de esgoto que dispensa produtos químicos, imensas redes coletoras e o uso de elevatórias.

O esgoto de 400 moradores da favela Independência é vertido para um biodigestor, onde as bactérias presentes na matéria orgânica se alimentam dos nutrientes do próprio esgoto, reduzindo a carga orgânica em até 95% num ambiente livre de oxigênio. Depois o efluente ainda passa por um filtro biológico antes de ser lançado ao rio, sem contaminantes. O resultado do banquete das bactérias é justamente o gás metano, que é transportado por uma tubulação até o fogão da creche comunitária, onde são servidas as refeições de 25 crianças. A coordenadora da creche festeja a redução pela metade do consumo de gás de botijão. Uma economia de 45 reais por mês, investidos agora na compra de frutas que enriquecem a sobremesa da garotada. As obras para instalação deste sistema – orçadas em 7 mil reais – acontecem neste momento na favela do Bonfim.

De acordo com o governo federal, a conta do saneamento básico no Brasil alcança a “bagatela” de 180 bilhões de reais. Este cálculo foi inspirado no modelo convencional de tratamento de esgotos. Infelizmente, a perspectiva de tratar a matéria orgânica com biodigestores e filtros biológicos – bem mais barata e com o benefício da geração de gás metano – não está sendo considerada.

Com o slogan “O petróleo é nosso”, a Petrobras quebrou preconceitos e se afirmou como a maior e mais lucrativa empresa do Brasil. Passaram-se décadas até que o gás natural jogado fora das plataformas de petróleo fosse entendido como insumo energético. Pois o metano também é nosso. Que nenhum preconceito impeça o entendimento de que este é um recurso energético que precisa o quanto antes ser melhor explorado, de forma inteligente e sustentável.

* Artigo publicado no jornal O Globo, no dia 17 de junho de 2004.

André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003).

 

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