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O CEO mentiu sozinho?

 

Por Renato Manzano, consultor e especialista em Estratégia, Gestão e Ativação de Negócios e Marcas (Branding), Marketing, Cultura e Comunicação Organizacional, Relações com Clientes e Públicos Estratégicos (RCPE), e Gestão da Mudança.

Fonte: Plurale

 

A maioria das pessoas talvez não saiba e nem mesmo se lembre. Mas a autossuficiência proclamada pela grande empresa de petróleo, em 2006, nunca aconteceu. De lá para cá, pelo contrário, o gasto com importações chegou próximo dos US$ 50 bilhões, abrindo um rombo imenso na balança comercial brasileira.

Em 2009, a gigante mineradora fez uma campanha publicitária impactante em nível nacional, declarando ser a primeira empresa do setor no mundo a “zerar seu footprint”. Não era verdade: os impactos gerados no Brasil e no mundo jamais foram zerados mesmo com a impressionante escala de plantio de árvores.

Há poucos anos, uma imensa rede de supermercados obteve matérias favoráveis em vários jornais, a partir de sua assessoria de imprensa, sobre sua política de qualidade de vida dos colaboradores e chegou a ser dada como exemplo em uma revista de negócios. Pendurou cartazes imensos em todas as lojas. Neles se via a imagem de colaboradores felizes praticando ginástica laboral. A empresa ganhou um importante prêmio da área de RH com a iniciativa. Mas o programa era uma farsa. “Só para inglês ver, moço”, disse-me uma funcionária que se queixava de dores nas costas, porque ficava sentada por muito tempo no caixa e só podia sair para ir ao banheiro com autorização expressa do supervisor. “Aqui a gente parece escravo”, confessou seu sentimento. De fato, havia professores de educação física contratados e os alto-falantes, com estardalhaço, convidavam os clientes para se juntar aos colaboradores para a sessão de alongamento. Mas notei várias vezes que apenas meia dúzia deles participava. Era pura encenação. Os demais eram literalmente proibidos de deixar seus postos de trabalho pelos quinze minutos. “O supervisor não deixa”, explicou-me a moça inconformada. Depois soube: os cartazes foram produzidos pela agência de comunicação com modelos: nenhum empregado jamais foi retratado na campanha em uma situação real.

Em 2004, um tradicional conglomerado de construção civil chegou a lançar um livro escrito por um renomado educador e consultor sobre o “pensamento empresarial, pedagógico e filosófico” de seu fundador que moldou o pensamento de toda a organização. A obra exaltava os princípios, valores, a transparência, as relações humanas e “uma nova visão de mundo”, baseada, sobretudo, na “construção da confiança”. Com carinho, na ocasião, recebi o livro das mãos de um alto executivo da empresa e o li com respeitosa atenção. Hoje, com tristeza, vejo que a marca se envolveu em um tremendo escândalo de pagamento de propinas e outras graves irregularidades, com dirigentes presos, processados… E isto me faz indagar: até que ponto essa empreiteira realmente acredita no legado de seu fundador?

 

As empresas mentem!

A maioria dos que lerem este artigo identificará essas empresas com facilidade. Eu poderia citá-las diretamente, sem receio algum, mas não o faço por dois motivos. Primeiro porque seria injusto citá-las sem enumerar a imensa lista de verdadeiras instituições empresariais, das quais deveríamos nos orgulhar, que se envolveram em mentiras e falcatruas, gastando milhões de reais em propaganda para convencer a população de que são empresas íntegras e confiáveis. Segundo, porque citar esta ou aquela empresa pode passar a impressão de que esse é um problema restrito a esta ou aquela marca institucional, o que está longe de ser verdade.

Infelizmente, ludibriar, passar por cima do código de ética institucional da própria organização, desrespeitar as leis e os direitos dos cidadãos, corromper e manipular, não tem sido exclusividade de poucas empresas. O fato é que um número muito expressivo delas, de todos os tamanhos e em todos os setores, adota uma “moral elástica” e a corrupção para garantir lucros e/ou vantagens sempre que possível ou “necessário”. Resumindo, as empresas mentem enquanto tentam vender uma imagem exemplar.

Que o diga o resultado do estudo de grande repercussão da professora Bethania Tanure, em 2012, feito com 330 representantes de alto escalão das maiores empresas do Brasil, quase metade delas com faturamento superior a R$ 5 bilhões anuais, naquele ano. Segundo a pesquisa, 74% dos altos executivos admitem que o discurso de suas empresas é o oposto do que realmente acontece na prática. Ou seja, são presidentes, vice-presidentes e diretores de mega empresas admitindo mentir, principalmente em assuntos relacionados a governos, funcionários, fornecedores e parceiros. E mais: dão pouca importância à qualidade de vida de seus subordinados, privilegiam amigos em detrimento de funcionários melhor capacitados, entre outras mazelas apontadas no estudo.

 

Falcatruas com assessoria técnica da Comunicação Empresarial

A questão que se coloca aqui é a seguinte: esses executivos não atuaram sozinhos. O fato comum a todas essas empresas é que elas se utilizaram de seu aparato comunicacional para “blindar” suas reputações, como se costuma dizer no jargão profissional. Essas empresas possuem profissionais tecnicamente gabaritados, contratam institutos caros que se utilizam de pesquisas e metodologias de análise muito avançadas, além, é claro, de tecnologia de ponta. Tudo isso visa tanto a perscrutar a mente e os hábitos de seus públicos, quanto a montar verdadeiros dossiês sobre políticos, ambientalistas, autoridades do judiciário etc. – o que é ilegal, quanto também para ocultar seus crimes e tentar criar uma imagem totalmente diferente diante da opinião pública. Nem que para isso tenham de gastar fortunas em campanhas publicitárias e manobras de relações públicas contratadas a peso de ouro.

Vejamos o que mostra uma pesquisa do Databerje realizada em 2009, com 282 respondentes entre as 1.000 maiores empresas listadas pelo “Valor Econômico”. Nela, 94,6% das organizações declaram ter departamentos de Comunicação estruturados. Esses departamentos abrangem os serviços de relações públicas, assessoria de imprensa, eventos, patrocínios, comunicação interna, marca etc. e é comum que contem com o apoio de fornecedores especializados – normalmente grandes agências de “public relations”, assessoria de imprensa e publicidade. Em 40% das empresas com mais de 5.000 empregados, ainda de acordo com o estudo, essas áreas têm status de diretoria e em mais da metade delas o responsável pela comunicação organizacional têm representação no Conselho Executivo. Parte significativa das grandes empresas envolvidas nos últimos escândalos veiculados pela mídia entrou nesse estudo.

Está claro, portanto, que os(as) executivos(as) de comunicação dessas organizações não podem alegar inocência diante dos crimes cometidos pelo alto escalão – até porque muitos fazem parte dele. Na quase totalidade dos casos eles(as) não só sabiam o que acontecia na organização como também eram os responsáveis por assessorar diretamente o primeiro escalão e por produzir conteúdos e veicular as estratégias midiáticas mentirosas e manipuladoras. São cúmplices conscientes.

Sempre caberá o argumento de que estavam “sob ordens”. Mas cabe, igualmente, o recurso da recusa ou da tentativa de dissuasão dos altos executivos, ainda que isso possa levar à demissão – o que também não é incomum. Felizmente, há muitos profissionais que levam sua profissão a sério e não fazem concessões, mesmo colocando seus cargos e carreiras em risco.

 

Segredos patéticos

Mas se por um lado as áreas de comunicação corporativa possuem esquemas muito bem estruturados (e caros), por outro são de um amadorismo risível. Isto porque é bastante comum que à boca miúda, muito além dos gabinetes dos executivos, a chamada “rádio peão” ou “rádio corredor” comente os fatos mais bizarros pelos corredores das empresas. Inclusive as falcatruas. São tabus. Mas nos “círculos de confiança” não são segredos assim tão bem guardados, já que mesmo os colaboradores mais humildes acabam tendo acesso a muita informação, ainda que por meios e formas as mais enviesadas. As informações vazam quase sempre da boca dos próprios executivos durante “conversas reservadas” com colegas e membros da equipe a quem se pede “o máximo sigilo”. Basta isso para que o movimento de sucessivos pedidos do mais absoluto segredo adquira um efeito cascata que inunda até o chamado “chão de fábrica”. É um fenômeno tão comum quanto degradante para a cultura de qualquer organização. Mas é, antes de tudo, patético.

Mas é fato que também no mercado da Comunicação Empresarial há uma criminosa indústria da mentira. Pelo dinheiro, pelo status e pelo poder, muitos comunicadores preferem o “caminho mais fácil”. Recentemente, soube por fonte da mais alta confiabilidade, que há executivos de marcas conhecidas que chegam à desfaçatez de cobrar comissão de produtores culturais para aprovarem projetos culturais e esportivos incentivados por Lei. Nestes casos, trata-se de corrupção direta: é propina! Os produtores têm medo de denunciar e sofrer sanções do mercado. Assim, muitos pagam.

 

A ética profissional e os conflitos morais

A Comunicação Empresarial é um mercado no qual atuo há 30 anos. Tenho imenso orgulho de conhecer incontáveis profissionais de caráter ilibado, pessoas exemplares, técnica e eticamente, os quais jamais se envolveram em esquemas dessa natureza. Vejo ainda entre meus alunos toda uma geração que está assumindo postos e que não compactua com esse estado de coisas. Mesmo assim se deparam com um tremendo conflito…

Há alguns anos, após ter ministrado uma aula de pós-graduação, uma jovem executiva veio me procurar em particular e disse em tom de brincadeira, para puxar conversa: “O senhor tem quase 30 anos de mercado na Comunicação e quer me convencer que nunca aceitou fazer nada de errado?”. Eu sorri e respondi com seriedade categórica a mais pura verdade: nunca! E contei a ela que pedi demissão de três excelentes empresas em defesa de questões éticas e morais, e que apesar disso ter me trazido momentos muito difíceis, inclusive financeiros, eu estava absolutamente feliz com minhas escolhas e em paz com a minha consciência. Ela trabalhava para um dos maiores conglomerados de bens de consumo do planeta. Visivelmente tocada, criou coragem e contou-me às lágrimas que havia participado de uma iniciativa para mascarar informações sobre os males que um determinado produto alimentício muito vendido poderia causar às crianças. Ela tinha fortes razões para acreditar que a empresa havia pagado propina a altos funcionários do Governo. Aquilo estava fazendo muito mal a ela. Essa jovem e bem sucedida executiva tinha uma filha pequena. E ela não deixava sua filha consumir o produto cuja estratégia de comunicação ela ajudara a compor. “Eu preciso do emprego”, disse-me ela, “mas sua aula foi perturbadora porque me colocou diante de um espelho para o qual eu tenho evitado olhar faz muito tempo. Não sei o que fazer. Penso em pedir demissão, porque não estou conseguindo conviver mais com isso”. Foi o que ela fez. Não é um dilema incomum. Não são situações fáceis.

 

E os valores das empresas, onde ficam?

Não há Missão, Sistema de Crenças e Valores ou Código de Conduta que se sustentem em uma organização sem que a verdade esteja presente nas atitudes, no próprio modo de fazer as coisas. É uma construção incessante e por vezes penosa. Sobretudo em um ambiente cultural, no Brasil, onde ser ético parece uma característica dos tolos.

O principal propósito da Comunicação, dentro e fora das organizações capitalistas é ajudar na evolução humana e na transformação social, na construção de um mundo mais justo e igualitário. No caso específico das empresas, a Comunicação ajuda a criar o próprio sentido da organização, através de seus colaboradores, e a construir relações e vínculos inquebrantáveis baseados na verdade, na confiança e na coerência entre as marcas institucionais, seus produtos e serviços, e toda a sociedade. Se não for assim, a comunicação torna-se uma ferramenta poderosa para que pessoas, grupos, regimes e empresas atravanquem o progresso humano e subvertam o próprio estado de direito. A corrupção e a manipulação comunicacional são aliadas poderosas contra a Democracia e os princípios republicanos. É triste observar que em pleno século XXI, o espírito dos Robbers Barons do século XIX continue a nos assombrar e a assustar tanto, ainda que com toda sofisticação e tecnologia dos dias atuais.

Contudo, há certas coisas, certas leis, que atravessam o tempo e são imutáveis porque fazem parte da essência da vida em sociedade. A máxima de Públio Siro, escrita no ano 50 a.C., segundo a qual:“A verdade, assim como a alma, nunca retorna, uma vez que tenha ido embora”, continuará para sempre verdadeira. Ela deveria orientar a construção das reputações de empresas e organizações humanas em geral, hoje e sempre. As empresas, afinal, acabam por refletir o ambiente político e social vigente. E nós, brasileiros, convenhamos, não temos muito do que nos orgulhar nesse quesito. Mas pelo imenso poder econômico e pela importância social que têm as empresas, sobretudo as grandes corporações, cabe a elas uma responsabilidade maior em dar o exemplo ético e mostrar que a riqueza pode e deve ser gerada com honestidade e competência e não com propinas, mentiras e manipulação.

Os profissionais de Comunicação que se dedicam ao mercado empresarial fazem de seu trabalho a sua religião. Para nós o trabalho ético é algo sagrado. E é por isso que causa tanta indignação e revolta constatar que entre nós, como em outras profissões, há ainda muitos que cometam terríveis sacrilégios.

 

 

 

Postado por Daniela Kussama

 

 

 

 

 

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