Como o Pokémon Go ajuda a explicar por que o Brasil é um país pobre

 

Por Rodrigo da Silva

Fonte: Spotniks

 

Você certamente já ouviu falar em Pokémon Go. O aplicativo é uma febre ao redor do mundo desde que foi lançado há poucos dias. Nos Estados Unidos, logo na primeira semana no ar, 20% dos usuários de Android já estavam apertando seus dedos no jogo. Segundo uma análise de comportamento de uma empresa de consultoria, à exceção de funções de sistema, como abrir a tela inicial ou discar um número qualquer, nesse curto intervalo de tempo o Pokémon GO se tornou a quarta atividade mais realizada em smarts Android nos EUA, atrás apenas do uso do Facebook, das buscas no Google e do uso da agenda de contatos. Um fenômeno.

O que talvez você não tenha se dado conta ainda, por mais óbvia que essa frase soe, é que o Pokemon Go não é um mero acaso do nosso tempo – ele é fruto de uma complexa divisão de trabalho, de um processo evolutivo que demandou o uso de incontáveis cérebros humanos, num sistema econômico construído a partir da propriedade privada, do preço e da competição, que você provavelmente conhece como capitalismo. Foi toda essa combinação que possibilitou a ascensão das redes sociais, massificou os notebooks, fez explodir o número de aparelhos celulares no mundo e agora permite que você saia por aí caçando Pokémon pela rua.

Todo esse processo é responsável por boa parte das coisas que fazem sentido e dão graça na sua vida. Foi ele quem criou condições para o surgimento do Netflix, do Uber, da Apple, da HBO, do Spotify, da Marvel, do Facebook. Sem ele, não é como se você simplesmente não tivesse acesso a um iPhone ou a uma televisão de plasma de cinquenta polegadas – você dificilmente assistiria algo como Game of Thrones, Harry Potter, The Avengers, House of Cards, aquele anime japonês ou a final da Champions League. E isso pra não falar das chances de você acompanhar o dia a dia do seu músico favorito ou viajar de forma tão rápida pra conhecer outros países nas férias.

Essa mágica é um fenômeno presente na sua vida de diferentes maneiras, do momento em que você acorda até a hora que você dorme. Mas se você reparou no parágrafo anterior, já deve ter sacado que parece ter algo estranho com ela – boa parte dos exemplos citados nasceram nos mesmos cantos do mundo. Há alguma razão pra isso?

De fato, não é uma coincidência que a Niantic – a desenvolvedora do Pokémon Go (ao lado da Nintendo) – tenha sua sede em San Francisco, na California, e não em Caracas ou em São Luis do Maranhão. Assim como também não é por acaso que todas as empresas e produtos citados acima nasceram no coração daquilo que nós vulgarmente conhecemos como nações capitalistas.

Pokemon Go ajuda a explicar por que o Brasil é um país pobre. Há uma velha máxima liberal que diz que se Steve Jobs fosse brasileiro muito provavelmente morreria camelô, vendendo discos piratas, e o mundo não teria conhecido a Apple. O que está por trás dessa frase? O fato incontestável que essas empresas todas só proliferam em países que, graças a um robusto arcabouço institucional, permitem a inovação e a destruição criadora através de um sistema econômico baseado na recompensa do lucro, da garantia da propriedade privada e da liberdade de ideias e ações.

Imagine que você tenha a chance de criar um mundo novo e nele desenvolva um sistema econômico onde todos os seres humanos do planeta estão a serviço de solucionar problemas uns dos outros. Nesse lugar, quanto mais você se coloca à disposição das pessoas, criando facilidades e prolongando o bem estar alheio, mais você será recompensado por isso. Parece uma boa ideia, não? O fato é que você não precisa criar nada novo pra isso rolar. Basta ajustar os ponteiros. Esse cenário já existe – e ao redor do mundo bilhões de pessoas estão inseridas nele. Nem você consegue escapar.

Basta sair de casa para encarar como as coisas funcionam. Em qualquer esquina de qualquer cidade, o mundo está literalmente aos seus pés. Cabeleireiros, mecânicos, padeiros, costureiros, tatuadores, motoristas, cozinheiros. A única coisa que conecta esses caras é o interesse em servi-lo. E a lógica aqui funciona da forma mais implacável possível: quanto mais pessoas você consegue atender, mais recompensas você terá e mais pessoas você conseguirá colocar à sua disposição. É por isso, aliás, que Steve Jobs morreu mais rico do que qualquer atendente da Apple – Jobs soube criar muito mais valor à humanidade ao longo da sua vida que qualquer funcionário da sua empresa.

E dizer isso tudo não é afirmar que toda riqueza do planeta é fruto da justa serventia das pessoas. Pelo contrário. Há muita injustiça no mundo, tanto no que diz respeito ao que acontece hoje em dia, quanto ao que já aconteceu no passado. E essa é a principal razão para entender por que esse papo de meritocracia não passa de um grande caô. Quer dizer, o mundo não é um lugar homogêneo, certo? Não é como se houvesse os mesmos padrões institucionais no Brasil, nos Estados Unidos, em Bangladesh e no Japão. Cada país tem suas próprias raízes históricas e sociológicas. Na prática, o lugar onde você nasce e a situação econômica da sua família são fatores consideráveis na hora de prever estatisticamente se você dará certo na vida ou não – quanto mais desenvolvido o país e a sua família, maior a chance de você acabar no topo da pirâmide (e isso não é o mesmo que dizer que um cara nascido num lixão não pode virar o homem mais rico do planeta; a probabilidade é que é muito menor).

No fundo, não importa o quanto você se dedica a realizar uma coisa, o que importa é o quanto as outras pessoas dão valor aquilo que você cria. Aqui você está a serviço dos outros, certo? Então são eles que escolhem. Nesse sistema, você pode ficar rico dedicando uma vida inteira à ciência até construir um remédio que cure o câncer, como pode alcançar isso gastando alguns poucos minutos compondo uma letra de funk. Não existe uma regra ou um esforço mínimo necessário. Não é você quem escolhe ficar rico. São os outros que escolhem isso por você.

Inegavelmente, no entanto, há muita gente malandra ganhando a vida explorando os outros. Empresários, banqueiros, industriais. O problema é que isso quase sempre é usado como desculpa para que governos controlem o mercado, escolhendo vencedores e perdedores. E o que era um nódulo pequeno acaba virando uma metástase. No fundo, todos nós reconhecemos que o mercado pode criar desigualdade, mas quase sempre ignoramos que boa parte da desigualdade no mundo é fruto das ações dos próprios governos (como alguns órgãos de Estado já vem admitindo). É estúpido. Nós identificamos um problema e apresentamos como solução algo que só irá piorá-lo. E quando não conseguimos resolvê-lo o que propomos? As mesmas medidas, com as mesmas desculpas.

Governos não raramente inibem concorrência, protegem cartéis, concedem monopólios, subsidiam grandes empresas, distorcem o mercado, redistribuem dinheiro às avessas e fingem curar todos os males que eles mesmos criam (e se você duvida disso é bom dar uma lida nesse estudo). Na prática, nos lugares onde as pessoas mais conseguem servir umas às outras sem a mão pesada de um órgão central dizendo quem recebe mais recompensas e quem se dá mal no final, a criação de riqueza se dá de forma mais acelerada. E há boas razões para isso.

Pare pra pensar no próprio cenário onde o Pokemon Go foi criado: o seu celular. É um dos ambientes mais livres e desburocratizados do mundo. Você só precisa de um aparelho celular (e já há mais linhas no mundo do que pessoas), acesso à internet e – bingo – você tem o mundo todo à disposição. É um mercado robusto, complexo, que reúne alguns dos serviços mais importantes do planeta na palma da mão. Os downloads na App Store, por exemplo: desde 2008 já passam de inacreditáveis 85 bilhões. São mais de 1,4 milhão de aplicativos disponíveis na loja da Apple, com as mais diversas funcionalidades. Números ainda maiores podem ser encontrados na Google Play. Como isso cria riqueza? Como mágica. E a lógica é a da serventia. Nesse momento, dezenas de milhares de desenvolvedores ao redor do mundo estão pensando em como agregar valor à humanidade produzindo novos aplicativos de celular. Tudo que eles querem é convencer você de que a solução que eles criaram para resolver o seu problema – um gerenciador de contas domésticas, um aplicativo de carona ou um jogo que irá salvar o seu dia do tédio –  é a melhor possível. E muitas das soluções ajudam a resolver alguns dos maiores problemas do planeta.

Pense por exemplo no que aconteceria se você não tivesse acesso a uma conta bancária. A sua vida seria um saco. Sem crédito, carregando pilhas de dinheiro na mão toda vez que quisesse pagar uma conta, com o risco de ser assaltado ou de ver a sua grana cair num bueiro a qualquer momento. Agora imagine que até a década passada 2,5 bilhões de pessoas no mundo não tinham acesso a uma conta bancária. Não é de se espantar que a maioria esmagadora delas vivesse nas regiões mais pobres do planeta – ter acesso a serviços financeiros é condição básica para o desenvolvimento humano, mas muitos países ainda tratam esse setor da forma mais burocratizada possível. Na Tanzânia, por exemplo, menos de 5% da população alcança essa possibilidade. E o que acontece por lá é a regra no mundo em desenvolvimento. Em 2009, os números apontavam para um banco para cada 100 mil pessoas na Etiópia. Abrir uma conta em Camarões custa US$ 700 – quantas pessoas você conhece que podem se dar a esse luxo mesmo num país com o nosso? E isso para não falar do cenário caso você seja uma mulher. Na Suazilândia, uma mulher só consegue abrir uma conta num banco com o consentimento do pai ou do marido. O cenário é caótico.

O que os celulares estão permitindo? Uma verdadeira revolução. O M-Pesa, por exemplo. Você nunca ouviu falar nele, mas é um dos aplicativos mais importantes do planeta: um serviço de banco por celular da Vodafone oferecido aos quenianos desde 2007. Com quatro meses no ar o serviço já contava com 150 mil usuários. Quatro anos depois o número saltou para 13 milhões. De acordo com a The Economist, apenas nos dois primeiros anos à disposição a renda dos quenianos que utilizam o serviço aumentou entre 5% e 30%. Só em 2015, os quenianos movimentaram US$ 27 bilhões em transações móveis. A revolução é tamanha que o país se tornou o recordista mundial de transações financeiras via celular, mesmo sendo uma das nações mais miseráveis do planeta.

A mágica é inevitável. Se lembra daquele número de 2,5 bilhões de pessoas sem acesso a uma conta bancária? Segundo uma estimativa do Banco Mundial esse número caiu 20% entre 2011 e 2014. E continua caindo. Graças a esses caras todos que passam o dia pensando em como ganhar recompensas financeiras resolvendo problemas da humanidade. Não dá pra negar que esse é um incentivo e tanto.

Alguns economistas da London School of Business and Finance calcularam que acrescentar 10 telefones por 100 pessoas aumenta em 0,6% o PIB de um país em desenvolvimento. E a conta aqui é simples. Se a gente pegar as cifras da ONU sobre redução de pobreza – que diz que 1% de crescimento do PIB resulta em uma redução da pobreza de 2% – isso significa que aquele crescimento de 0,6% reduziria a pobreza em cerca de 1,2%. Se 4 bilhões de pessoas ainda vivem na pobreza ao redor do mundo, isso significa que cada 10 telefones novos por 100 pessoas tiram 48 milhões da pobreza no mundo. Isso é 1/4 da população brasileira. Nada mal.

A boa notícia é que na África subsaariana os números de aparelhos celulares não param de subir. E não são mais 10 por 100. Hoje, quase metade da população no continente possui acesso a uma linha. Só em 2014, a indústria de telefonia móvel contribuiu com mais de US$ 100 bilhões para a economia da região. E os resultados são impressionantes. No Zâmbia, por exemplo, fazendeiros sem contas bancárias agora dispõem de telefones celulares para comprar sementes e fertilizantes. A prática foi responsável por aumentar seus lucros em quase 20%. As revoluções acontecem das mais diferentes formas. Através de aplicativos de celular, hoje os africanos conseguem acesso – muitos pela primeira vez – a serviços de educação, saúde, meteorologia e emprego. Não é de se espantar que um dos mercados mais acessíveis e desburocratizados do mundo – o de aplicativos de celular – seja um dos principais responsáveis pela diminuição da pobreza no planeta. É a livre competição em ação.

A grande questão aqui é que esses aplicativos todos são desenvolvidos em sua maioria nos países que já são desenvolvidos. E eles não nascem lá por acaso. Quer dizer, não é uma coincidência que o Vale do Silício esteja nos Estados Unidos e não na Bolívia. Há poucos dias, Eduardo Paes, prefeito do Rio, pediu para que o Pokemon Go fosse lançado oficialmente também no Brasil, às vésperas das Olimpíadas. O pedido não aconteceu sem motivo. Não dá pra prefeitura da cidade simplesmente sair inventando aplicativos como esse, não é mesmo? Seria tão estúpido quando o governo lançar um concorrente ao Facebook – e ele pode até lançar, o problema é que ele não convenceria ninguém a utilizar o serviço.

Pokemon Go pode ser encarado num primeiro momento como um aplicativo sem grandes propósitos, mas o fato é que ele é resultado direto de uma economia complexa, que atingiu tamanho nível de divisão de trabalho graças aos processos de mercado, que é capaz de dar utilidade econômica à diversão. Ao redor do aplicativo, não por acaso, em poucos dias já começa a se formar uma robusta teia de negócios. Um americano da Florida, por exemplo, criou um serviço de transporte para caçar Pokémon (por US$ 25 a hora o cara vira motorista para as pessoas usarem o aplicativo sem risco de acidente, dirigindo ao redor de PokéStops, ginásios e parques locais). Em Indiana, também nos EUA, um abrigo de animais está incentivando as pessoas a levarem seus cãozinhos ao local, enquanto eles aproveitam o espaço para jogar (o aplicativo, aliás, está ajudando as pessoas a encontrar animais de verdade). Outros estabelecimentos comerciais já fazem o mesmo. Num cenário de envolvimento como esse, não é de se espantar que o aplicativo, entre outras coisas, já esteja ajudando as pessoas a lutarem contra a depressão.

O fato é que o mesmo cenário desburocratizado que ajuda a formar milhões de aplicativos de celular – e, por sua vez, gerar riqueza – vale também no mundo offline. Os países não são capitalistas apenas porque são ricos – são ricos porque são capitalistas. E ninguém precisa explorar o outro pra alcançar isso, como os aplicativos de celular estão mostrando (exploração é uma regra no mundo desde que o homem é homem, não uma exceção; não dá pra usar essa desculpa pra explicar porque alguns países enriqueceram nos últimos dois séculos).

Há pouco tempo, o mundo inteiro era miserável. Ainda em 1820, 75% da humanidade vivia com menos de um dólar por dia (hoje esse número é de 17%). Desde então, a renda média das pessoas ao redor do planeta aumentou em nove vezes. Por que alguns países enriqueceram mais que outros nesse intervalo de tempo? O que faz com que um cidadão de Botswana – um país da África subsaariana que há apenas quatro décadas vivia na mais absoluta pobreza – tenha ultrapassado a renda média per capita de um cidadão brasileiro? Parte dessa resposta está no Pokémon Go. Países que criam incentivos para que as pessoas sejam recompensadas financeiramente em apresentar soluções para a humanidade – como é possível de forma desburocratizada com os aplicativos do seu celular – permitem um mundo mais rico e socialmente mais engajado.

É isso que você encontra em Palo Alto e em San Francisco. É isso que falta em Salvador e no Rio de Janeiro.

 

 

 

 

Postado por Daniela Kussama