Cerrado: dores e amores aos 65 milhões de anos

 

Por Rafael Loyola, Ecólogo e diretor do Laboratório de Biogeografia da Conservação e professor da Universidade Federal de Goiás

Fonte: O Eco

 

 

Hoje é meu aniversário. Nasci há aproximadamente 65 milhões de anos e cheguei à minha vida adulta há cerca de 40 milhões de anos; não conto os anos mais. Floresci em meio a tempestades e incêndios, climas quentes e frios, sobrevivi à Era do Gelo e expandi e contraí meus limites ao longo do tempo. Vi os dinossauros se extinguirem e convivi, em seguida, com as mais improváveis variedades de animais imensos. Preguiças gigantes de cinco toneladas, mastodontes – os bisavôs dos elefantes, e gliptodontes, tatus enormes do tamanho do que hoje vocês, humanos, chamam de carro.

Ah… os humanos. Vi vocês chegarem há uns 11 mil anos. Vi vocês comerem dos meus frutos, se deliciarem com o araticum, o cajuzinho-do-cerrado, as castanhas de baru. Vi vocês caçarem animais gigantes e testemunharem seu declínio e extinção devido à essa caça e às mudanças climáticas. Vi vocês descansarem de suas caçadas e batalhas à sombra dos meus buritis, nas minhas veredas frescas à margem dos meus rios.

Alimento, milênio a milênio, as três maiores bacias hidrográficas do continente sul-americano. Cuido de nascentes das bacias Amazônica, do São Francisco e do Prata. Meus rios subterrâneos correm por toda minha extensão e se acumulam nos aquíferos Guarani e Bambuí, fornecendo água para plantas, animais e pessoas que de mim dependem. Em meu domínio há altíssima diversidade biológica, comparável às de minhas vizinhas Amazônia e Mata Atlântica. Forneço abrigo, solo, clima e água a mais de 13.000 espécies de plantas. Meu solo é pobre, mas elas não me julgam por isso. Ao contrário, 44% de minhas plantas vivem exclusivamente dentro dos meus limites. Somos íntimos. Suas raízes tocam profundamente em minha alma, retiram de lá o que lhes dá a vida e devolvem generosamente essa dádiva em forma de água e carbono, armazenados em suas raízes, folhas, frutos… assim sobrevivemos às mudanças climáticas passadas e enfrentaremos as atuais e futuras.

Os rios voadores que vêm da Amazônia são gentilmente levados às minhas profundezas por essa floresta invertida que me dá vida e atrai metade de todas as aves do Brasil. São mais de 850 espécies, incluindo o suiriri, a anhuma, as emas, as siriemas, os arapaçus, beija-flores e sanhaços. Metade dos répteis que rastejam pelo país sobrevivem em meus domínios; 17% dessas 180 espécies decidiram ficar para sempre em minha casa, sendo exclusivas daqui. O mesmo acontece com os mamíferos, com suas mais de 200 espécies. Animais únicos como o lobo-guará, a onça-pintada, e também aqueles que não têm nomes compostos como a ariranha, os gambás e macacos. Assim como cuidei dos gigantes, cuido pacientemente dos pequenos. Centenas de espécies de formigas, inúmeras libélulas, cupins, besouros, minhocas e minhocuçus, aranhas e ácaros vêm desfrutando de minha companhia, por séculos e séculos.

Cultivo a amizade das plantas e animais, mas meu amigo mais antigo ainda é o fogo. Minhas plantas aprenderam como sobreviver a seus ataques repentinos. Seus troncos tortuosos, cascas grossas e raízes profundas são uma forma que encontraram de perdoá-lo e dizer que mesmo após sua visita, a vida floresce e volta ao normal. Os animais ainda reclamam muito dele. Choram seus parentes perdidos. Ainda assim, o fogo é meu amigo. Aprendemos a nos respeitar, a conviver com nossas diferenças e superar nossas dificuldades por milênios a fio.

Mas agora estou ficando cansado. Metade de mim já se foi. A chegada do Homem mudou minha relação com meus amigos, até com o fogo. Já não consigo sustentar mais de 600 espécies de plantas que estão ameaçadas de extinção. Já não consigo me revigorar em áreas onde meu solo foi convertido, compactado, meu manto de árvores e gramíneas retirado, minha água desviada. As pessoas me chamam de “celeiro nacional”; por minha causa o Brasil é o 2o maior produtor de alimentos do mundo. Mas em companhia do eco de milhares de cavidades subterrâneas tão lindas e ricas em diversidade quanto o que há em cima do meu solo me pergunto retoricamente: será que essas mesmas pessoas não entendem que sem minha biodiversidade, sem meu solo, sem minha água nada disso tem futuro? Nada disso tem valor? Para onde irão minhas espécies? Para onde irão os polinizadores, dispersores, predadores que mantém os cultivos em pé? Por que usam minha riqueza para gerar tanta pobreza?

Não estou ficando velho; quando vocês se forem ainda estarei aqui, mas confesso que estou ficando emotivo. Quero reestabelecer nossa amizade, e entregar seus alimentos de forma gratuita. Preciso de vocês para restaurar minhas florestas e campos, para reservar minha água, para manter a confiança de milhares de espécies de animais e plantas que dependem de mim. Juntos vamos sobreviver, mas preciso de algo. Em meu aniversário quero apenas um presente: o seu respeito. Respeito pelo meu futuro e pelo futuro dos seus filhos e de suas gerações. Respeito por mim, o Cerrado.

 

 

 

Postado por Daniela Kussama