Sobre quem faz a diferença em favor de um mundo melhor

Lúcia Chayb

No Brasil de hoje, é possível identificar projetos com princípios sustentáveis em nível governamental?

É possível sim. Vejamos alguns exemplos que me parecem bem interessantes: as licitações sustentáveis que privilegiam a compra pública de produtos e serviços com o menor impacto possível ao meio ambiente já são realidade em cidades como São Paulo e Porto Alegre. Já existem também leis municipais que tornam obrigatórias em Curitiba e no Rio de Janeiro a instalação de sistemas inteligentes de coleta, armazenamento e uso de água de chuva.
As câmaras municipais de Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e São Paulo discutem regras que tornem obrigatória a instalação de coletores solares para aquecer a água do banho em diferentes tipos de edificação.
A cidade de Belo Horizonte conta com três usinas de reciclagem de entulho e São Paulo já obriga os empreiteiros a se responsabilizarem pela destinação inteligente do entulho das obras e a usarem apenas madeira certificada nas construções.
Enfim, há inúmeras iniciativas que não costumam aparecer em lugar de destaque na grande mídia, mas que ensejam esperança e otimismo. O Brasil está mudando. Não com a velocidade que gostaríamos, mas na direção que desejamos.

Como você vê a transversalidade objetivada pela Ministra Marina Silva?

Entendo a transversalidade como um conceito moderno e arrojado de gestão, onde as responsabilidades – no caso, na área ambiental – são compartilhadas. Num regime presidencialista, o sucesso dessa estratégia depende basicamente da sinalização que a maior autoridade da república dá para que se cumpra esse objetivo. Ela se resolve no dia-a-dia, na condução dos projetos, na definição das prioridades, nas rotinas da administração pública. Nesse sentido, embora reconheça que houve avanços em alguns programas, como o do combate ao desmatamento no primeiro mandato, entendo que o Presidente Lula mantém-se muito distante de um modelo de gestão em que a transversalidade seja efetivamente praticada, e a questão ambiental seja entendida como eixo das políticas públicas em andamento.
Ao eleger o meio ambiente como um dos entraves ao desenvolvimento – semanas antes de lançar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – o presidente foi no mínimo precipitado. O único mérito dessa declaração infeliz foi motivar a resposta dada pela Ministra Marina: “Perco a cabeça mas não perco o juízo”.

Os Estados e Municípios priorizam políticas sustentáveis em suas ações?

Até onde me é possível acompanhar, a maioria dos governadores e prefeitos parece desconhecer o significado da expressão “política sustentável”. O analfabetismo ambiental predomina na classe política. Os interesses são imediatistas, os projetos mais interessantes são aqueles que se resolvem no tempo do mandato – 4 anos – e faz parte da cultura política entender a realização de grandes obras como o carro-chefe de qualquer administração que se pretenda bem sucedida.
Além disso, há alianças inescrupulosas com empreiteiras e construtoras que apóiam as campanhas eleitorais em troca de grandes projetos que consomem os parcos recursos disponíveis. Mas não é difícil encontrar nos diferentes níveis da administração pública pessoas que já acordaram para a necessidade de estimular outros valores e atitudes. Não raro, essas pessoas formam grupos, conquistam apoios, organizam movimentos, e abrem espaço para a formulação de projetos que inibem os interesses mesquinhos e imediatistas.
O grande trunfo da sustentabilidade é que os projetos bem consolidados asseguram benefícios econômicos, sociais e ambientais de longo prazo. Até sob o ponto de vista da sobrevivência política, é inteligente ser sustentável.

Que instituições da sociedade civil se destacam com ações sócio-ambientais efetivas? Poderia exemplificar?

São tantas que dificilmente deixaria de cometer uma injustiça ao citar nomes. Mas vamos lá: o Instituto Socioambiental, para quem destinamos a totalidade dos direitos autorais do livro “Meio Ambiente no Século 21” é uma das organizações mais ativas na produção de diagnósticos e na formulação de propostas em defesa da biodiversidade. Nessa mesma direção gosto muito das ações do SOS Mata Atlântica (em particular do projeto “Florestas do Futuro” e do fomento à multiplicação de RPPNs – Reservas Particulares do Patrimônio Natural), do Greenpeace ( o relatório divulgado ano passado sobre o percurso que a soja faz da Amazônia até a Europa foi muitíssimo bem estruturado e alcançou ampla repercussão) do Instituto Vitae Civilis (pela capacidade de articulação e mobilização em nível nacional na bem sucedida campanha “Cidades Solares”), do WWF ( pela mobilização em favor dos recursos hídricos e contribuição para o aparecimento de novas reservas ambientais) e de muitas outras experiências que ocorrem em maior ou menor escala no Brasil. Acho importante citar também a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que escolheu como tema da Campanha da Fraternidade em 2007 a Amazônia, três anos depois de ter mobilizado onze mil paróquias em todo o país para refletir sobre sobre a questão da água em uma outra campanha inspirada num tema ambiental.

Mesmo depois de terem sido duramente criticadas, as ONGs ambientais fazem parte do processo de desenvolvimento sustentável brasileiro? Qual a sua importância? Diversos projetos implementados por ONGs podem ser considerados exemplares?

Como tudo na vida, tem ONG que presta e ONG que não presta. Para mim, as organizações governamentais que fazem a diferença são aquelas que conseguem denunciar com responsabilidade o que está errado e formular propostas consistentes e viáveis para que se descubra o jeito certo – ou menos errado – de fazer as coisas. Nesta área ambiental, e isso vale para ONG como vale para qualquer pessoa física ou jurídica, é preciso incomodar. São muitos os interesses mesquinhos consolidados na complexa máquina governamental, atrofiando as iniciativas realmente importantes. O fato é que os governos são passageiros, as políticas e diretrizes anunciadas com pompa e circunstância nem sempre duram ou conseguem atender aos interesses legítimos da sociedade. Os governantes precisam ser fiscalizados e municiados de informações relevantes para a tomada de decisão. Entendo que não há democracia sem ONG. E nos últimos anos, principalmente na área ambiental, não há formulação de políticas públicas efetivas sem a preciosa colaboração de “ongueiros” recrutados pelo governo para as repartições públicas em Brasília ou nos gabinetes estaduais e municipais. Quis o destino que aqueles que mais se destacam nas ONGs sejam muitas vezes cobiçados pelos governantes. Considero isso um avanço, porque os governos nem sempre dispõem dos quadros mais capacitados para as novas demandas que se revelam no dia-a-dia. É preciso apenas evitar a desastrosa mistura com o caldo de inoperância, letargia e morosidade que contamina as estruturas governamentais, com honrosas exceções.

No campo da mídia, principalmente a televisiva, percebe-se uma evidente evolução na abertura de espaços para a divulgação dos temas ambientais. O que motivou os executivos das emissoras?

O bom jornalismo poderia ser entendido como aquele que acompanha a evolução dos fatos sem perder de vista o contexto em que eles se resolvem. Na mídia eletrônica, principalmente, não há muito tempo para a “contextualização”. A prioridade é a transmissão dos fatos numa velocidade cada vez maior, o que muita vezes confunde quem consome notícia. Num mundo que experimenta uma crise ambiental sem precedentes, tornou-se imprescindível abrir espaço para falar de aquecimento global, escassez de recursos hídricos, desertificação do solo, produção monumental de lixo, destruição da biodiversidade, transgênicos, rejeitos nucleares, e outros assuntos que demandam alguma explicação adicional para que sejam devidamente compreendidos. A instantaneidade do jornalismo, o competitivo mercado do “on line”, não pode comprometer a contextualização dos fatos em que os assuntos ambientais se resolvem.
Como falar de degelo das calotas sem mencionar o fenômeno do aquecimento global e a responsabilidade da humanidade sobre isso tudo? Nesse processo, vai ganhando espaço e prestígio no meio jornalístico o que pensadores como Edgar Morin e Fritjof Capra chamam de visão sistêmica. Vivemos num universo composto por fenômenos interligados que são interdependentes e interagem o tempo todo. Só é possível perceber essa realidade quando enxergamos sistemicamente. Há um longo caminho pela frente, mas estamos melhores hoje do que já estivemos há bem pouco tempo atrás.

Na mídia impressa de grande circulação, hoje já há uma relativa consciência, principalmente quanto a mudanças climáticas, desflorestamento e recursos hídricos. Acredita que essa cobertura sensibiliza as pessoas com poder de decisão como para implementar uma política de desenvolvimento nacional que considere todos esses fatores?

Acredito piamente no poder da mídia, para o bem ou para o mal. Não sei exatamente em que nível isso acontece, mas acontece. Certa vez, um empresário do Espírito Santo com quem eu nunca tinha falado antes ligou para a redação da Globo News perguntando-me se a tecnologia empregada para o tratamento de esgoto com geração de biogás, exibida numa reportagem assinada por mim, funcionava de fato. Disse que sim e ele me pediu os contatos de quem realizava aquele projeto.
Explicou apenas que desejava saber mais informações sobre o que viu na tevê. Seis meses depois recebi um telefonema do responsável pelo projeto. Ele estava em Alto Caxixe, a 100 km de Vitória, e fez questão de me informar que foi por causa da reportagem que ele estava ali prestes a entregar para uma comunidade de baixa renda uma estação de tratamento de esgoto com produção de biogás financiada pelo tal empresário. Fiquei muito feliz em saber disso. Recentemente, exibimos no “Cidades e Soluções” um programa sobre uso de água da chuva com exemplos do Rio de Janeiro, Curitiba e Crato (CE). Uma semana depois da exibição do programa, fui informado que a administração da Rodoviária Novo Rio havia encomendado um projeto para a instalação de um sistema inteligente de coleta, armazenamento e uso de água de chuva por causa justamente do programa. Essas histórias se repetem e sugerem um enorme cuidado em relação aos assuntos que damos visibilidade, e como fazemos isso. Tem muita gente vendo e replicando as experiências.

De que forma a Internet influi na pauta dos veículos para a cobertura ambiental?

Existe uma enorme variedade de sites de notícias ambientais ou boletins especializados produzidos por ONGs, empresas, governos e até cidadãos comuns que se aventuram nessa área da divulgação de assuntos socioambientais. A oferta é grande e há produtos de excelente qualidade. A questão fundamental é a credibilidade da fonte, mas isso não chega a ser um problema caso haja um mínimo de cuidado na gestão da notícia e a disposição de checar a informação. Entendo que a internet é hoje uma ferramenta indispensável para que façamos um jornalismo de qualidade. Mas nada substitui o trabalho de reportagem in loco, na rua, no contato direto com as pessoas e situações. As novas gerações de jornalistas precisam vencer a preguiça de enxergar o mundo pela telinha do computador. O grande prazer desta profissão é contar histórias interessantes na condição de testemunhas. Precisamos sentir o cheiro da notícia e a internet não tem cheiro.

E a mídia alternativa especializada? Ela existe? Qual o seu papel?

Existe sim e a tendência é que esse movimento cresça. É na chamada mídia especializada que encontramos uma abordagem mais cuidadosa, um espaço mais generoso, uma linha editorial mais comprometida com os assuntos que consideramos importantes. Mas entendo que a segmentação da mídia não deve avalizar a elitização da notícia. A preocupação com a clareza e a objetividade, com a tradução do jargão científico, com a universalização dos conceitos usados para explicar essa crise ambiental sem precedentes em que estamos mergulhados devem inspirar todos os que se propõe a escrever ou falar sobre esses assuntos. O jornalista que não consegue se comunicar com clareza para o maior número possível de pessoas não cumpre a sua função social.

O programa Cidades e Soluções, que se exibe na TV a cabo, pode ser considerado alternativo ou de massa?

O que mostramos no programa são práticas e experiências bem consolidadas e que merecem ser chamadas de soluções. Coletores solares, hortas urbanas, uso de água de chuva, asfalto ecológico, neutralização de carbono, reciclagem de casca de coco verde, licitações sustentáveis, são assuntos que tem despertado muito interesse dos telespectadores. Há uma enorme demanda de informação sobre o que está dando certo, quem está fazendo a diferença em favor de um mundo melhor e mais justo, um mundo sustentável.
Sinceramente, não me sinto confortável no rótulo do “alternativo”. Isso me lembra dos que falam de “energia alternativa” ou “medicina alternativa” como algo exótico, extraordinário, não convencional. Mostramos o que já é realidade, dá certo e pode ser replicado. O fato de estarmos na TV a cabo torna o produto acessível apenas a quem pague por ele, ou cometa a ilegalidade de roubar o sinal via “gato Net”. A Globo News é assistida por formadores de opinião, políticos e empresários. Coleciono mensagens de pessoas e empresas que pedem mais informações sobre os projetos com o objetivo de levar adiante essas iniciativas, e isso tem deixado toda a equipe do programa muito feliz.

“Cidades e Soluções” é o pioneiro na imprensa em compensar as emissões de carbono que gera na sua produção. Esta iniciativa deveria ser um modelo a ser seguido não somente pelos outros veículos como por toda a cadeia produtiva, tanto na indústria quanto na agricultura e pecuária e, claro, de forma individual por proprietários de automóveis e pelas pessoas, mesmo que usem um transporte coletivo para se locomoverem. Acredita nessa replicabilidade?

Ela já está acontecendo. Compensar as emissões de gases estufa com o plantio de árvores não resolve o problema do aquecimento global, mas ajuda. Gostei muito de saber que uma rede de supermercados na Grã-Bretanha decidiu informar no rótulo de seus 70 mil produtos o quanto cada um deles emitiu de gases estufa na atmosfera. Daqui a algum tempo, tão importante quantos as informações de praxe como preço e composição do produto, os rótulos terão de informar também o quanto de carbono foi emitido. Isso é uma pequena revolução nos hábitos de consumo. Não é possível imaginar um mundo com menos carbono sem que consumidores e eleitores se manifestem e façam as escolhas certas. Para isso é preciso informação e ela começa a ganhar escala.
Mais e mais pessoas estão acordando para o fato de que o planeta está mudando e que nós ficaremos em apuros se não nos corrigirmos. As 680 árvores que plantaremos neste ano de 2007 para neutralizar as emissões de gases estufa do “Cidades e Soluções” crescerão nas margens do Rio Ipiranga, no Jardim Botânico de São Paulo, assegurando a recomposição das matas ciliares onde já não existe água. Em breve estaremos neutralizando também o programa “Mundo Sustentável”, que vai ao ar na Rádio CBN.

Um exemplo de educação ambiental em massa é o filme de Al Gore. Uma verdade inconveniente fez mais pelo meio ambiente do que inúmeros, estudos, relatórios e informes científicos. Aqui não teve a repercussão que merecia, mas atingiu a elite empresarial, o que já é um começo. Não seria um caminho para o Brasil?

Tenho conversado muito ultimamente com professores de escolas públicas e particulares. Entendo que o grande passo na direção de uma educação ambiental de qualidade passa pelo treinamento do corpo docente. É preciso descobrir as estratégias mais eficientes de educar, mobilizar e gerar novas atitudes. Os conteúdos escolares precisam abrir espaço para discutir a sustentabilidade no dia-a-dia. E isso começa pelo professor. Eu diria até pelo exemplo do professor. Não importa tanto o que ele diz, mas o que ele faz. Documentários como Uma verdade inconveniente aceleram o processo de aprendizagem e, pode-se dizer, elimina etapas que poderiam demandar mais tempo em sala de aula. Nesse sentido, é uma excelente ferramenta para sensibilizar a conscientizar tanto alunos como professores. Mas como preparar os alunos antes da exibição do filme? Que atividades serão realizadas depois? Haverá algum dever de casa especial? É aí que entra o professor determinando diretamente o nível de sucesso dessa experiência.

Estamos às vésperas da realização dos Jogos Pan-americanos, no Rio de Janeiro. Teria sido uma belíssima oportunidade para implementar um projeto sustentável com energia solar e eólica, alimentação orgânica, coleta seletiva e reciclagem dos resíduos, biodigestores anaeróbicos em vez de rede de esgoto, transporte limpo, etc., tais como nas Olimpíadas (principalmente a partir de Atenas), na Copa do Mundo (a partir da Alemanha) e no próximo ano na Fórmula 1; já no campo político é bom lembrar a realização da última convenção do Partido Democrata dos EUA. Podemos pensar que o Ministério do Esporte, o Governo do Estado do Rio e a Prefeitura do Rio estão completamente alheios a este tipo de visão que hoje é uma regra fundamental no campo dos esportes?

Estive em Sidney nos Jogos Olímpicos de 2000, os primeiros Jogos Verdes da História. Vi o parque olímpico inteiro abastecido com energia solar, bem como a vila olímpica. Também estive na Alemanha, no ano passado, na primeira Copa Verde. Os alemães neutralizaram totalmente as emissões de gases estufa do evento, e reduziram em 20% o consumo de energia e de água, bem como a produção de lixo. É inacreditável – para não dizer absurdo – que justamente na cidade da RIO’92, tenhamos desperdiçado a chance de tornar os Jogos Panamericanos um evento sustentável. Difícil imaginar que não sabiam como fazer. Pôr a culpa nos custos adicionais que eventualmente incorressem no projeto seria menosprezar a inteligência de quem poderia captar recursos junto a empresas privadas que financiariam os ajustes necessários em troca de uma justa exposição de imagem. Ao que parece, houve até quem sugerisse mudanças no projeto do Pan, mas ficou nisso. Paciência. Quem sabe, numa próxima Copa do Mundo, se ela for realizada no Brasil?