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Diálogos de Ecologia e Budismo

Budismo dialoga com Ecologia

Um show musical de três horas marcou o início do II Encontro Diálogos de Ecologia e Budismo, que aconteceu no Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), de Viamão, RS, entre os dias 11 e 14 de outubro. O templo foi transformado em sala de espetáculos. No palco, um imenso pôster do Buda Sakiamuni reinava absoluto. Outras imagens budistas e panôs indianos compunham a decoração do espaço, cujo “clima” de aconchego e alegria foi conseguido com os tons quentes dos efeitos da iluminação especial. Reconhecidos artistas gaúchos como Giba Giba, Adriana Deffenti, Ângelo Primon, Dimitri Cervo e a Camerata Brasileira, apresentaram-se para mais de cem pessoas. O grupo de praticantes budistas Mandala do Lótus também tocou, tendo os músicos Daniel Alves e Márcio Resende como convidados. Nos dias seguintes, o evento mesclou palestras, discussões em grupo e apresentações artísticas.

Na mesma semana, entre os dias 10 e 12 de outubro, Porto Alegre sediou o II Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental, evento realizado pelo Núcleo de Ecojornalistas do RS (NEJ-RS), que teve como tema “Aquecimento Global: Um Desafio para a Mídia”. Cerca de 400 profissionais, estudantes, pesquisadores e ambientalistas reuniram-se no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), nos três dias do encontro. Entre os palestrantes, houve convidados da Inglaterra, do México, do Panamá, de Cuba e do Uruguai. Dezessete estados brasileiros também estiveram representados entre participantes e oradores.
Um dos painelistas do Congresso, o jornalista André Trigueiro, esteve no Caminho do Meio. Ele, que foi o criador e é professor do curso de Jornalismo Ambiental da PUC RJ, é também ambientalista e apresentador da Globo News. No encontro de Ecologia e Budismo, André participou de uma mesa redonda de Reflexões sobre a Questão Ecológica, no dia 13, ao lado dos filósofos Celso Marques e Carlos Naconecy, da professora Clítia Martins, do engenheiro agrônomo João Batista Volkmann e do lama Padma Samten. A seguir, um resumo das falas do lama no encontro e a transcrição da palestra de André Trigueiro.
Meio ambiente: o sagrado entre nós

Há 15 anos e quatro meses, quando nem se falava em ONG no Brasil, eu era repórter de rádio e tive o privilégio de cobrir o evento paralelo à Rio 92, o Fórum Global das ONGs. Foi então que testemunhei o desembarque de Sua Santidade, o Dalai Lama, no encontro de lideranças religiosas que estavam ali confirmando o comprometimento das religiões, das tradições místicas, com a questão ambiental. Este evento ficou marcado na minha memória. No ano passado, surgiu a oportunidade de entrevistar Sua Santidade, em São Paulo. Eu me preparei para isso, acessando o site oficial dele, onde reparei que havia um link específico, apenas sobre sustentabilidade, com aproximadamente 20 textos assinados pelo Dalai Lama nos quais ele ratifica este compromisso.

Nesses 15 anos, nós vimos o Papa João Paulo II, mais de uma vez e, mais recentemente, Bento XVI, também afirmarem esse compromisso do catolicismo com o que se poderia convencionar chamar de “teologia ambiental”, que tem o compromisso de resgatar o sagrado em tudo o que existe. A partir deste olhar, não se deveria usar termos como “seres viventes” e “recursos naturais”, nomenclatura utilizada pela economia e reproduzida na mídia, segundo a qual o que existe na natureza tem valor quando é “recurso”. Assim, transformam-se as obras da criação, que têm valor simplesmente por existir, em recursos porque podem ser processadas, têm serventia ou utilidade para nós.

Aqui no Brasil, o teólogo da libertação, Leonardo Boff, destaca-se nesta proposta de unir espiritualidade e meio ambiente. No discurso de Boff está muito presente algo que me toca profundamente que é o fato de valorizarmos a biodiversidade como algo importante para o equilíbrio dos sistemas, ou seja, a diversidade tem valor intrínseco e tudo o que existe tem uma função e, ainda que não saibamos exatamente qual seja, ela empresta equilíbrio ao todo. Isso é algo que nos escapa muito facilmente na academia, na gestão pública, na iniciativa privada e na abordagem da mídia. Estamos na era dos recursos, em que tratamos a natureza, o meio ambiente, como um grande supermercado, do qual retiramos das prateleiras aquilo que nos interessa sem a preocupação de entender como isso funciona verdadeiramente.

A meu ver, essa dualidade é o grande desafio que está colocado tanto para os educadores, quanto para as religiões, particularmente o judaísmo e o cristianismo. No Velho Testamento, na parte do Gênese, há um parágrafo que diz: “Crescei e multiplicai-vos”. Esses dois verbos afirmam a soberania do homem, feito à imagem e semelhança de Deus, sobre a natureza. Para alguns teólogos, encontra-se aí a base de sustentação para uma hierarquia, ou seja: “eu não sou o dono do mundo, mas sou o filho do dono”.

Então, em nome desta filiação o homem pode ordenar, subjugar, submeter. Ele está em um nível acima e isso pode estar por trás de determinados processos rigorosamente não-sustentáveis de desenvolvimento. Segundo esses teólogos, este modelo suicida no qual nos encontramos, que exaure, em uma velocidade espantosa e sem precedentes, os recursos naturais e fundamentais da vida encontram lastro em trechos como esse do Antigo Testamento.
Vejo muitos educadores com dificuldade de esvaziar a alteridade “nós e a natureza”, “nós e o meio ambiente”. É a dificuldade que tem o ser humano de se sentir como uma totalidade orgânica e integrada.

Atualmente, alguns físicos descrevem o universo como um conjunto de fenômenos interligados e interdependentes que interagem o tempo todo. Então, estamos todos mergulhados nessa teia da vida. Enxergar a realidade desta maneira implica na utilização da visão sistêmica como ferramenta e nós temos uma enorme dificuldade de enxergar sistemicamente, porque somos essencialmente fragmentados.

O jornalismo, por vício de origem, é fragmentado e fragmenta a realidade a cada edição de um jornal impresso, de um telejornal, um radiojornal ou de um noticiário virtual na internet. O que estamos fazendo? Estamos arbitrando o que é interessante hoje. É como brincar de “lego”. Vamos montando as pecinhas e dizendo: “Isso foi o mundo hoje”. Quem disse? “Isso é o que é interessante hoje.” Quem disse?

Essa dualidade homem/natureza foi confirmada por quatro pesquisas do IBOPE, coordenadas pela professora Samira Crespo, do Instituto Superior de Estudos das Religiões, que levantaram o que o brasileiro pensa sobre o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. Foram estudos caríssimos, que ouviram dois mil entrevistados no Brasil inteiro. Uma amostragem representativa de toda a pirâmide social.

Quando perguntados: “O que é meio ambiente para você?”, a maior parte de nós, brasileiros, estica o dedinho e responde: “O meio ambiente é a Amazônia, é o Pantanal, é o peixe-boi, é o mico-leão dourado. É o céu azul, as aves do céu.” Nós não nos incluímos na resposta. Isso é gravíssimo, porque compartimenta o meio ambiente como outra pecinha do lego que não nos inclui e é claro que não aferimos, em princípio, valor a algo que não nos inclui.

O meio ambiente começa no nosso meio e é urgente que resgatemos este sentido, principalmente com as crianças, porque depois, mais tarde, fica difícil discutir a visão sistêmica porque o “software” já tem a programação compartimentada. Esse conceito dos sistemas e dos ciclos funciona melhor na infância. Como fazer isso?

A palavra “homem” vem do latim, “humus”, que significa “terra”. Nós somos feitos de terra. Para a religião espírita e para outras que também acreditam na pluralidade dos mundos habitados, os seres que constituem cada reino da criação, cada planeta, são feitos dos mesmos elementos que constituem o planeta. Assim, nós, da Terra, somos homens, húmus. Somos feitos de terra. Somos feitos de poeira cósmica, de pó de estrela, de partículas datadas de bilhões de anos, que se arrumam e se desarrumam com o passar do tempo. Aglutinam-se e desmancham-se.

A expressão “do pó viestes, ao pó voltareis” não é uma retórica bíblica sem sentido. Tanto é verdade que quando fazemos um exame de sangue para ver o estado geral do nosso corpo, uma das informações mais importantes que o laboratório nos dá é justamente a quantidade de minério que jaz nas profundezas do solo e que nós transportamos nas veias: ferro, zinco, potássio, manganês, sódio. Se nós tivermos um déficit mineral no corpo, estamos mais suscetíveis a diversos males e doenças. É possível que já tenhamos ouvido do médico uma bronca do tipo: “Vai pra farmácia agora tomar ferro!” No bom sentido, claro. Porque sem ferro não dá, a pessoa não rende. Parafraseando Cristo, não tem “vida em plenitude”, não tem saúde, não tem disposição. Você não trabalha bem, não dorme bem, não namora bem.

Nós somos feitos de terra e também somos feitos de água. Caprichosamente, na mesma proporção em que a água se resolve na superfície do planeta. A vida tem origem na água e nós, através de complexos processos evolutivos, migramos das águas dos oceanos para os continentes, mas a água continua sendo um elemento fundamental à saúde. O mesmo médico que cobra o exame de sangue, provavelmente deve recomendar: “você deve ingerir de dois a três litros de água potável por dia”. Para quê? Para que o seu sistema, seu ecossistema funcione bem. Para irrigar a pele, o cabelo, os órgãos e as glândulas. Para que o nosso ciclo vital funcione adequadamente, precisamos de água.

Nós vertemos lágrimas, de alegria ou de tristeza, que têm o sabor dos oceanos. Na literatura médica há registros interessantes, como o de uma pessoa que estava se esvaindo em sangue e não havia como promover uma transfusão no tempo certo. Era preciso estancar a sangria e repor sangue rapidamente. Como não havia sangue por perto, injetaram água de coco nas veias da pessoa. Não estou dizendo para ninguém fazer isso, claro, mas funcionou e entrou para os anais da medicina. A água de coco é um isotônico muito melhor do que muitos que existem por aí, artificiais; um elemento muito afim, muito comum conosco. Nós, portanto somos feitos de terra, somos feitos de água, e somos feitos de ar.

A tradição mística da Índia nos ensina a importância da energia presente no ar: o “prana”, quer dizer, uma energia fundamental vitalizante, o grande elemento, o grande nutriente que capturamos através do ato da respiração e que nos assegura, igualmente, a condição de viver. No Ocidente, para as pessoas se acalmarem, dão água com açúcar. Já no Oriente, respira-se fundo. Nós não sabemos respirar. Eles sabem. As técnicas milenares de meditação e yoga têm na respiração as bases para o alinhamento dos chakras. Ao meditar e respirar bem consegue-se obter lucidez, clareza mental e redução do batimento cardíaco, entre muitos outros benefícios. A energia vai se apoderando, se avolumando dentro de nós, tendo a respiração como eixo.

A pessoa consegue suportar vários dias sem comer. Ela fica fraquinha, mas não morre. Também pode ficar um número menor de dias sem ingerir líquidos. Ela se desidrata, mas não morre. Mas quanto tempo o ser humano pode agüentar sem respirar? O ar é fundamental; é o grande nutriente.

Portanto, como é possível quebrar a alteridade, a dualidade? Nós temos que dar estes exemplos, porque, o que está dentro, está fora. Se o ar está poluído, se a água está contaminada, se o solo é estéril, se há desertificação, se os nutrientes do solo estão se exaurindo, eu pereço. Eu vou sucumbir. Não está fora. O que está fora está dentro também.

De todos os desastres ecológicos, o que mais me preocupa é aquele que não costuma ser associado ao desastre ambiental: o suicídio. Se somos parte do meio ambiente, é claro que os indicadores de suicídio deveriam ser entendidos como um problema a ser enfrentado sistemicamente. O ambiente pode gerar ondas de conforto ou de desconforto, agonia e sofrimento, em que a pessoa, num dado momento, não consegue enxergar luz no fim do túnel.

Há três semanas, a Organização Mundial da Saúde divulgou um relatório informando que, aproximadamente, três mil seres humanos estão se matando por dia no planeta. São números conservadores porque há o problema da subnotificação. Normalmente, não queremos que apareça no atestado de óbito que a causa da morte foi suicídio, então damos um jeitinho. No Brasil, isso é fácil. Entretanto, mesmo aqui, suicídio é caso de saúde pública e o Rio Grande do Sul lidera as estatísticas.

Então, é um desafio resgatar o sagrado que está presente na natureza e em nós. Não por acaso, nenhuma religião entende o suicídio como solução. Segundo as leis de Deus, judeus não enterram suicidas em solo sagrado. Os católicos não aplicam o último sacramento. Enfim, temos problemas na hora de falar sobre o tema, que é um assunto ambiental.

Em que medida nosso estilo de vida determina “pegadas ecológicas” cada vez mais profundas? Ou seja, quantos hectares do planeta estamos usando para viver? Que impacto o nosso estilo de vida tem sobre o planeta? Este é o exercício da pegada ecológica (www.earthday.net/footprint), que é uma metodologia, um questionário, em que o entrevistado responde se anda de carro, de avião, se come carne, qual o tamanho da casa onde mora, etc. Ao responder aquilo tudo, o programa determina a área do planeta que existe exclusivamente para suprir suas demandas de matéria-prima, energia e água.

Eu não tenho muitos elementos à mão para afirmar que a mídia esteja sensível a isso. O jornalista não tem a dimensão emocional da notícia. Ele pode ser perfeito do ponto de vista dos conteúdos racionalmente entendidos como importantes, mas qual foi o resultado do jornal, depois do “boa noite”? Qual é a sensação que fica no telespectador? Esses elementos subjetivos, emocionais não são levados em consideração pelos jornalistas. Nós não temos essa formação.

Como eu posso informar, sem esvaziar as perspectivas de esperança e de solução? Como posso resistir à tentação de achar que apenas a má notícia, a notícia que remete à tragédia, ao desastre, é a que me dá audiência, me dá a atenção que eu preciso ter? Como eu posso trabalhar certos conteúdos na mídia que não remetem ao caos, mas que podem ser tão ou mais atrativos para o público?

No programa “Cidades e Soluções”, exibido no Canal Futura, da Globo News, mostramos boas práticas, boas experiências. O que já está consolidado no plano do concreto como resultado. Fiquei feliz porque falamos muito sobre isso no II Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental. Dizer o que está errado, fazer o diagnóstico, é função da imprensa, sempre. Mas também é importante mostrar os resultados.

Eu sempre digo para os meus alunos, a imprensa tem duas asas: uma é a denúncia, a outra, é apontar as perspectivas, as soluções. Se possível, a cada problema grave, que causa tensão, devemos mostrar a solução.

É muito comum vermos pessoas que já não agüentam ler o jornal todo o dia, que estão “zapiando” a televisão, param no telejornal, vêem uma notícia ruim e mudam imediatamente de canal. Por quê? Por que nós temos auto-estima, um instinto de sobrevivência. Há algo em nós que resiste a essa sensação de ir afundando, de ir perdendo o contato com a luz.

A gente quer luz, quer acreditar nas coisas que dão certo, quer saber o que funciona. Nós, profissionais de mídia, estamos precisando nos reciclar. Precisando acordar, para a urgência de uma nova atitude enquanto jornalistas, abrindo espaço na mídia para um planeta em transformação.

Essa transformação ocorre hoje. Existem muitos heróis anônimos por aí, que realizam um trabalho fundamental na construção de um novo mundo.

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