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O “choque de realidade” causado por Emicida ao cantar “Haiti” na TV

 

Aconteceu no programa Altas Horas, do Serginho Groisman, na madrugada de domingo. Caetano e Gil foram os homenageados, cantaram algumas músicas juntos e ouviram alguns convidados cantarem outras pérolas do vasto repertório da dupla.

Foi quando Serginho chamou os rappers Emicida e Nyack para cantarem “Haiti”, talvez a mais contundente música de protesto (se é que podemos chamá-la assim) de Gil e Caetano. Composta em 1993, Haiti (um dos países mais miseráveis do mundo) é um soco no estômago. Traz na letra as muitas violências que tornam o Brasil um país tão absurdo quando o vizinho caribenho: racismo, chacinas, corrupção,etc.

Na levada do hip-hop, a música é simplesmente contagiante. Cantada pela dupla de rappers, ganhou em autenticidade e verdade. E isso se confirmou antes deles saírem do palco, quando Serginho perguntou se o Haiti ainda era aqui.

Fui buscar na Globo Play (lá pelos 60 minutos de duração) o trecho exato em que Emicida deu a seguinte resposta, a qual transcrevo abaixo:

“Infelizmente, pra nós que vivemos na beirada da cidade, mais do que nunca (o Haiti é aqui). São Paulo mais do que nunca. A música acaba sendo um grande retrato do tempo. Às vezes, essa contemporaneidade até assusta. Porque existem coisas que a gente gostaria que ficassem no passado, que a música fosse unicamente um retrato disso. Mas infelizmente essas coisas atravessam o tempo. Eu acho que São Paulo vive tempos muito violentos em todos os sentidos. Eu acho que tem essa questão da política. Mas acho que tem uma violência na periferia de São Paulo que nunca cessou. Então a gente canta essa música com outra energia, com outra emoção, justamente porque esse é o retrato de um lugar para onde a gente vai voltar daqui a pouco. O nosso Haiti, sabe? É isso”.

Daí pra frente o programa seguiu diferente. Antes de sair do palco, Emicida e Nyack abraçaram Gil e Caetano sob um silêncio sepulcral da platéia impactada. O choque de realidade trazido por aqueles jovens que levaram pro estúdio da TV algo tão contundente quanto a letra de “Haiti” deixou marcas. Até Rodrigo Santoro, que também participou do programa, ao ser perguntado por Serginho sobre outro assunto logo após a saída dos rappers, disse meio sem graça que “ainda estou meio tomado por tudo isso que aconteceu aqui”.
Segue o link do programa Altas Horas e ouça a interpretação dos rappers:

ASSISTA AO VÍDEO NA ÍNTEGRA (siga até aproximadamente uma hora de gravação)

ASSISTA AO VÍDEO (somente o trecho da apresentação)

 

Abaixo, a letra de “Haiti”.

Quando você for convidado pra subir no adro da
Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de
meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

 

André Trigueiro

 

 

 

 

 

 

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